Embora ela tenha se formado em jornalismo e trabalhado em diários como o Jornal da Tarde e o Estadão, onde permaneceu até o início da década de 1980, Lia Gityn Tulmann sempre foi uma apaixonada por gastronomia. Dava gosto falar sobre o tema com ela – seus olhos brilhavam. Nos conhecemos em 2000, quando era editor do caderno Fim de Semana, publicado pela extinta Gazeta Mercantil. Fui até o quilo de Lia, no Shopping Jardim Sul, o Giorno Terraço (hoje, Restaurante Lia), por indicação da empresária Mônica Pinto, responsável por trazer as panelas e produtos Le Creuset ao Brasil. Mônica insistia na minha visita porque acreditava que ficaria surpreso com a criatividade exibida num bufê de comida a quilo. E era verdade. Lembro-me até hoje do tabule de frutas secas, uma feliz releitura da tradicional salada árabe de salsinha, trigo e tomate que proporcionava uma viagem pelo Oriente Médio. Lia Tulmann, a cozinheira intuitiva, morreu nesta quinta, 23 de abril, aos 69 anos. É mais uma vítima do coronavírus.
Conversei longamente com Marcela Tulmann, uma das duas filhas de Lia, formada em gastronomia pela Anhembi Morumbi em 2003 e responsável com a mãe pela operação dos negócios da família. “Depois de terminar o curso, fui morar na Espanha, onde trabalhei no Martín Berasategui e, depois, no el Bulli [dois restaurantes espanhóis que estão entre os mais reputados do mundo, o segundo fechado desde 2010], mas eu aprendi tudo mesmo com a minha mãe”, garante a chef.
Além do Restaurante Lia, com o aposto Cozinha Criativa, no Jardim Sul, ela e a irmã Patricia são donas e administram ainda o Elvira, na Vila Olímpia, e uma fábrica de doces e massas. “No total, temos 90 funcionários que são parte da família. Temos sorte de ter colaboradores que estão com a gente desde o começo e são muito dedicados. Depois da morte da minha mãe, já estamos na labuta”, afirma a cozinheira, que conta ainda com a ajuda do pai, Dairson, ex-marido e amigo de Lia, que já cuidada da parte administrativa da empresa.
Não por acaso, a mãe serviu de inspiração para a primogênita. Sem medo de correr riscos, Lia fazia combinações diferentes e acertadas. “O cliente não vem aqui comer mais do mesmo. Um filé ele encontra em muitos lugares”, costumava dizer. Exemplos de seu atrevimento culinário não faltam: o carpaccio de goiaba, o strudel salgado de queijo brie e damasco, o quibe vegetariano de lentilha, a canjica ao molho curry e coco, o ninho de beterraba com morango e rabanete. Também fazia clássicos à sua moda como o raviolini recheado de ricota e escarola, o pernil de cordeiro com feijão-branco, o varenique de batata, o virado à paulista e o filé à parmegiana. Nos doces, as guloseimas variam de musse de coco com baba de moça a torta cremosa de pistache e morango, ambas memoráveis. No jantar, o restaurante, temporariamente fechado, vira ainda uma pizzaria à la carte e em rodízio.
A longa carreira de Lia na gastronomia tinha quase quatro décadas. Começou em 1983, quando ela criou a Salames & Pastrames, no Shopping Portal do Morumbi, uma delicatessen na qual vendia frios, patês, pães e produtos importados, além de receitas preparadas lá mesmo. “O negócio foi crescendo e, em 1987, mudamos para o Jardim Sul, onde montamos a confeitaria Sweet Salames. Minha mãe teve a ideia de transformar o lugar em um quilo chique em 1993”, recorda-se Marcela. Antes de adotar o nome de sua fundadora, teve vários outros: Sweet Terraço, Giorno Terraço e Lia Giorno.
Como Lia, chegou a ter uma filial entre 2007 e 2016, no nono andar da sede social do Jockey Club, no centro da cidade, bem ao lado da Ladeira Porto geral, que conduz à região da caótica Rua 25 de Março. Nesse endereço, lembro de um de meus almoços com meu amigo Carlos Augusto Calil, que conheci como professor na ECA e que naquele momento era secretário municipal de Cultura. Calil aprovava o lugar, que reputava como “oásis de preços razoáveis no centro”. Não havia como discordar dele.
Marcela conta que a inspiração para Lia sempre foi a mãe, Hannah, que com o marido, Salomon Gityn, deixou a Sibéria na década de 1950 para se fixar em Curitiba, onde Lia nasceu em 22 de março de 1951. Com menos de três anos, mudou-se com os pais para São Paulo. “Ela foi aprendendo sobre cozinha com a curiosidade, de forma empírica, vendo os outros cozinharem”, explica Marcela.
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Até 2007 em um período de quase uma década, Lia teve como sócia Lourdes Bottura. Em conjunto, desenvolviam o pratos e lançaram a marca Badebec, que se tornou um sucesso e se espalhou pela cidade. Também participaram de três edições do evento de arquitetura e decoração Casa Cor, que pertence à Editora Abril, a mesma que publica a Vejinha. Após a ruptura comercial, a marca passou às mãos de Lourdes.
Diante do cenário atual da pandemia de coronavírus, a incansável Lia seguia trabalhando na montagem de seu delivery na semana em que os shoppings foram fechados. Portadora de artrite reumatoide, ela teve como primeiro sintoma uma diarreia que se estendeu por cinco dias. Como não cessava, procurou o atendimento no pronto-socorro do Albert Eistein. Em resposta, ouviu que não parecia ser nada grave. Se desconhecia uma relação entre diarreia e a Covid-19, a tal “gripezinha”.
“Ficou mais cinco dias em casa, até que ela acordou com febre”, lembra Marcela. “Levamo-la ao hospital, ela estava com o pulmão bastante comprometido e foi direto para a UTI da Beneficência Portuguesa de onde não saiu mais”. Lia Tulmann, que chegou a apresentar uma discreta melhora, teve complicações com a substituição de um cateter e faleceu depois de uma internação de 23 dias — vinte deles intubada –, deixando as filhas Marcela e Patricia e os netos Gabriel, Ana e Leo. Com sua partida, fica um vazio nesse importante seguimento da gastronomia que atende trabalhadores na hora do almoço.
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