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Notas Etílicas - Por Saulo Yassuda

Por Saulo Yassuda Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
O jornalista Saulo Yassuda cobre cultura e gastronomia. Faz críticas de bares na Vejinha há dez anos. Dá pitacos sobre vinhos, destilados e outros assuntos

Após polêmica, bar vizinho a igreja muda de nome e retira elementos religiosos da decoração

O boteco, que se chamava Confessionário, tinha até um genuflexório, aquele suporte para ajoelhar durante as preces

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Atualizado em 29 jul 2022, 11h51 - Publicado em 29 jul 2022, 06h00
Público do bar dos dois lados da via
O público dos dois lados da via: mesas coladas ao templo (Clayton Vieira/Veja SP)
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O boteco vizinho da tradicional Paróquia Nossa Senhora do Monte Serrate, em Pinheiros, se chamava Confessionário. A carta tinha drinques com nomes como “pecador”. O salão ostentava em frente ao balcão um genuflexório, o suporte para ajoelhar durante as preces. E as paredes se mostravam repletas de fotos de templos religiosos.

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Esse conjunto de elementos sacros, que para os donos parecia uma ótima estratégia de marketing e atraía principalmente o público mais jovem do agitado Largo da Batata, deu o que falar na comunidade católica. Ofendidos, muitos fiéis da igreja adjacente reclamaram com o pároco. Foi um quiproquó danado. Após a repercussão, o bar teve de ceder. Mas não foi fácil. “Não é só trocar os quadros e o cardápio — é trocar o conceito”, explica o sócio Jean Ponce.

O resultado: o estabelecimento passou por um rebatismo e virou Bar do Toninho — a placa deve ser pregada até 10 de agosto. Todas as referências ligadas à religião foram espinafradas. Jean renomeou as bebidas — “pecador”, por exemplo, foi transformado em um inócuo “viola”. Essas alterações aconteceram aos poucos, sem muito alarde.

O ambiente antesda alteração:genuflexório no salão
O ambiente antes da alteração: genuflexório no salão (Clayton Vieira/Veja SP)

Quem aparecia ali nos últimos três ou quatro meses já não via mais o tal do apoio de joelhos, antes utilizado para fotografias ébrias por alguns frequentadores. “Foi para a manutenção”, despistavam os funcionários. As camisetas dos garçons, que outrora exibiam a inscrição “ninguém é santo”, surgiam riscadas. Algo estava acontecendo. “A troca de nome é ruim, mas a gente tentou fazer isso ser positivo. Tivemos muita conversa com a igreja”, conta Jean.

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Responsável pela paróquia desde 2019, o padre Vandro Pisaneschi começou a receber as queixas logo com a chegada do vizinho boêmio, em fevereiro. As razões eram, sobretudo, em relação ao nome do local, herdado de um café que funcionou ali, e à decoração temática. Uma das abordagens em particular marcou o religioso.

“Um paroquiano, dos mais idosos, de uns 80 anos, veio trazer um recorte de jornal sobre a abertura do bar. O senhor estava triste, me deu o papel até meio que tremendo, e o texto trazia esses detalhes da casa”, relata o sacerdote. “Eu esperava que tivesse uma repercussão mais negativa de outras partes da igreja. Como era algo público e saiu em reportagem, era questão de tempo para outros padres virem me cobrar.”

No entanto, isso não ocorreu, já que foi procurado antes por um dos sócios do endereço. “Jean já começou a falar de cara: se é motivo de tristeza, mudaremos o nome”, conta. “Hoje em dia, as coisas (no Brasil) estão muito exacerbadas. Se vamos conversar sobre um ponto divergente, pode acontecer qualquer tipo de reação. A deles foi muito amistosa e cordial”, elogia o pároco. “Me surpreendi.”

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Jean conta seu lado: “No início, o padre havia se ofendido. Mas nos colocamos no lugar dele. E precisamos conviver bem — estamos lá (no bar) todos os dias”. E admite: “A gente começou errado, eu poderia ter ido lá conversar antes”.

Essa política da boa vizinhança também representa, de certa forma, a sobrevivência financeira do ponto boêmio. Como tem apenas nove lugares no
salão, o boteco depende das dez mesas que são dispostas na lateral do templo, do outro lado do número 86 da Rua Campo Alegre — cabem, ainda, outras dez na calçada do estabelecimento. Qualquer rusga com a igreja seria um gatilho para fazer os religiosos implicarem com as cadeiras, e o ex-Confessionário, que tem alguns sócios em comum com o bar Guarita, perderia quase metade do faturamento.

Mesmo assim, esses assentos contíguos ao santuário só podem ser ocupados após as missas. Aos sábados, dias em que o bar abre às 3 da tarde, a freguesia recebe a permissão de se sentar do lado de lá só por volta das 20h. Isto é, nas noites em que não ocorrem atrasos. No último dia 23, excepcionalmente, o espaço só foi liberado por volta das 21h30, quando as luzes da paróquia se apagaram.

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E quem é o tal do Toninho, presente na nova alcunha do botequim? É Antonio Ponce, pai de Jean, que já ajudava no dia a dia e, tal qual o filho, é católico. “Além de ser uma homenagem ao meu pai, com a mudança ele se torna sócio operacional, a partir de 10 de agosto. Ficará na casa em algumas noites”, anuncia o empresário.

Jean com o pai
Jean Ponce com o pai, Toninho, na produção da cachaça da casa: novo homenageado (Arquivo Pessoal/Reprodução)

O padre Vandro aguarda o retorno da dupla, que está em viagem de férias, para finalmente conhecer o ex-Confessionário. “Em nenhum momento a ideia é que eu me oponha a um estabelecimento onde a intenção é fazer as pessoas conversarem, falarem sobre a vida e descontraírem”, garante. “Fico à disposição: se eles quiserem colocar no cardápio um ‘petisco do padre’, podem colocar”, diz. A dupla sacerdote e dono de bar tem até planos futuros. Quem sabe uma festa junina da igreja, com chefs de cozinha? A ver.

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Se as relações com o Confessionário se tornaram amistosas antes de as desavenças se firmarem, não é possível dizer exatamente o mesmo do vizinho Bar das Batidas. Aberto em 1957, o pé-sujo é conhecido popularmente como C do Padre. “Como o bar é mais antigo (que o ex Confessionário), muito mais gente vem falar comigo a respeito”, diz o padre Vandro.

Luiz Carlos Bianchi, que cuida da operação do boteco sessentão desde 2010, assegura que pintou a porta virada para a paróquia, que continha o nome polêmico. “Vou tirar a letra ‘C’ do toldo, e o padre ficará feliz”, promete. “Segundo a lenda, quem apelidou de ‘C do Padre’ foi Raul Seixas”, jura ele.

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Publicado em VEJA São Paulo de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800

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