Quem testa vinhos profissionalmente sabe bem: várias regras são consideradas na degustação. Não se sai de casa com perfume, para não atrapalhar a percepção dos aromas. Antes de sorver o líquido, é necessário analisar visual e olfato. E, nas chamadas provas às cegas, não se sabe qual é o rótulo do que se está bebendo.
Conhecedor dessa etiqueta básica, eu, que escrevo sobre bebidas há mais de uma década, imaginei que me sentiria em casa numa das sessões de análise sensorial de águas que a Sabesp promove semanalmente e onde adota esses métodos do mundo do vinho. Mas não foi bem assim. Essas degustações, ou “ensaios”, acontecem após as inspeções e análises de rotina das águas de mananciais, em quinze laboratórios.
Não precisei comprar vermífugo — as amostras, vindas de estações de tratamento, precisam ser potáveis para o teste. “Aqui, fazemos o exame organoléptico, de gosto e odor. São parâmetros que poderão causar algum tipo de rejeição do consumidor, não necessariamente risco à saúde”, explica Izabel Cristina de Ernesto, gerente do Departamento de Controle de Qualidade da companhia. Assim, é possível prever e evitar que moradores do estado reclamem de algum cheiro ou gosto estranho no que sai da torneira.
Desde 2011, esse tipo de prova é obrigatória por uma portaria do Ministério da Saúde, mas já era feita na Sabesp desde 1996. O grupo de quatro ou cinco integrantes, os “painelistas”, tem um dress code: o jaleco branco. Há 140 “sommeliers” na empresa, de distintas áreas — químicos, biólogos, secretárias… —, que não devem ser fumantes nem ter escovado os dentes antes do procedimento. Todos eles passam por treinamento.
Na degustação, em vez de garrafa, usa-se o erlenmeyer, o frasco de laboratório; no lugar das taças, copos baixos de vidro. O primeiro passo é fungar uma amostra pura de H 2O, sem perfume, para “limpar” o olfato. Aí, sim, podemos seguir para os líquidos extraídos de mananciais, revelados apenas no fim da prova. Para sentir os aromas, só depois de dar aquela giradinha. “A roda do vinho você conhece, né? Essa é a da água”, diz Izabel ao mostrar um grande gráfico em pizza sobre a mesa, no qual estão dispostos os grupos de aromas.
Na ficha de degustação, baseada no Standard Methods for the Examination of Water and Wastewater, “bíblia” a respeito do assunto, há 37 possibilidades de cheiros, que podem denotar defeitos ou o caráter do terroir. Cabe ao degustador preencher a intensidade deles, de “L” (limiar) a 12 (“forte”). Estão lá na lista o floral, o frutal, o cítrico, madeira, grama. Mas aí vão aparecendo mofo, palha, piscina(?), batata(??), pântano(???). Na cabeça, rola um bug. E como diferenciar “piscina” de “cloro livre” e “cloro combinado” entre as alternativas? E o que é esse “peixe podre”? Sim, uma água pode ter esse perfume, diz a ficha.
Sorvo uma porção, a passeio pela língua e palato. Tento captar os sabores e as tais “sensação no nariz e na boca”. Adstringente? Oleoso? Irritante? Sei lá eu, é água. Procuro uma cuspideira, dessas que descartamos os vinhos. Não encontro. “Você aceita essa amostra?”, pergunta a líder da mesa, a química Sonia Diniz, que soma as notas dos participantes e faz a média, antes de revelar de onde vem a água. Engulo. Glup. “Ehr…”, hesito. “…Sim.”
Pelo menos 50% dos painelistas precisam ter a mesma sensação para que ela seja registrada no relatório final. O documento é enviado para a estação de tratamento, que mexerá os pauzinhos caso alguma alteração seja necessária. A Sabesp atende 28 milhões de habitantes em 375 municípios paulistas, com fornecimento de água e, na maioria deles, coleta e tratamento de esgotos.
“É muito mais difícil degustar água mineral do que vinho. Acham que elas são iguais, mas são diferentes entre si”, diz o especialista em bebidas Mario Telles Jr., que dá aula acerca do assunto na Associação Brasileira de Sommeliers (ABS) em São Paulo há mais de uma década. “No caso da água da Sabesp, é ainda mais difícil”, comenta. “Se você não sentir cheiro de cloro na água da torneira, nem experimente!”, alerta Sonia Diniz. O aroma é sinal de que ela foi tratada. Sabe aquela máxima de que água é incolor, inodora e insípida? Nem sempre é assim.
Publicado em VEJA São Paulo de 31 de maio de 2023, edição nº 2843.