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“Olha, mãe, tem banheiro”: as histórias de quem vive em casas transitórias

Prefeitura vai multiplicar por quatro as vagas da Vila Reencontro, programa destinado a famílias em situação de rua

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
23 fev 2024, 06h00
Família Ribeiro, no Pari: promessa de emprego e de mudança de vida
Família Ribeiro, no Pari: promessa de emprego e de mudança de vida (Léo Martins/Veja SP)
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Ao fechar a porta de uma casa pela primeira vez em muito tempo, a então desempregada Gilmara Gonçalves, 37, se emocionou com uma situação corriqueira no dia a dia da maioria das pessoas, mas ausente de sua realidade no momento. “Olha, mãe, tem banheiro”, disse Rafaella Cristina, 5, assim que entrou na pequena residência pintada de azul com detalhes em branco, na véspera do Natal de 2022.

Até então e por quase um ano, a família, composta também pelo pai, o manobrista autônomo Ricardo Arantes, 44, e por Maria Iris, 1, vivia em um abrigo coletivo da prefeitura. “Aqui temos privacidade e podemos fazer nossa higiene pessoal com tranquilidade”, afirma Gilmara, uma das primeiras moradoras da Vila Reencontro Cruzeiro do Sul, na Zona Norte.

Gilmara e a família: presente de aniversário
Gilmara e a família: presente de aniversário (Léo Martins/Veja SP)

O local — que possui quarenta módulos pré-fabricados com placas de fibras de vidro, de 18 metros quadrados cada, contendo cama, armário, ventilador de teto, geladeira, banheiro e uma pequena cozinha, com pia e um fogão de duas bocas — é um dos quatro equipamentos em operação construídos pela prefeitura de São Paulo para famílias em situação de rua. Ao todo, as quatro vilas (as outras ficam no Pari, Anhangabaú e Santo Amaro) abrigam 600 pessoas, mas possuem capacidade para receber 992.

Outras oito instalações serão construídas em todas as regiões da metrópole e ficarão prontas até o final do ano, elevando a capacidade do serviço para mais de 4 000 vagas — para uma população total em situação de rua de cerca de 32 000 pessoas.

O modelo das vilas paulistanas é inspirado no conceito housing first (moradia primeiro) existente em países como Estados Unidos, Canadá e Portugal, entre outros. A ideia, tanto lá quanto cá, é absorver famílias de forma mais célere e menos burocrática, para que elas possam viver em um “endereço”, se capacitar e estruturar, para conseguir ganhar autonomia com mais solidez, a chamada “saída qualificada”.

Por isso, na Vila Reencontro, o prazo máximo de permanência das famílias é de 24 meses. Depois, por um mesmo período, a prefeitura disponibiliza o Auxílio Reencontro, no valor de 1 200 reais por mês. Nesse caso, o dinheiro é utilizado exclusivamente para o pagamento de um aluguel, cuja negociação é feita diretamente entre prefeitura e proprietário do imóvel.

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Para se tornar elegível ao benefício da Vila Reencontro, que inclui alimentação feita ou distribuída no local (além da opção de cozinhar nos próprios módulos), cursos de capacitação e possibilidade de atuar em frentes de trabalho da gestão municipal, a família tem que seguir alguns critérios, como ter ficado no máximo três anos nas ruas e possuir até quatro membros.

Romualdo (em pé) e Gabriel: sem pressa para sair
Romualdo (em pé) e Gabriel: sem pressa para sair (Léo Martins/Veja SP)

Grupos familiares com crianças de zero a 6 anos, mães vítimas de violência doméstica, idosos e pais solo, entre outros, têm prioridade. “Aqui tenho meu canto e não penso em sair antes dos dois anos, pois estou estudando para tirar o certificado para atuar como corretor de imóveis e conseguir me estruturar”, afirma o agente de saúde Romualdo Souza, 45, que vive há quatro meses na Vila Reencontro do Pari com o filho, Gabriel, 16. “Somos nós dois e um ajuda o outro”, diz o menino, que está no primeiro ano do ensino médio e pensa em se formar em tecnologia da informação.

Também cuidando sozinha de uma filha, Daniela Palma, 53, passou cinco anos em um centro de acolhimento da prefeitura até se mudar para a Vila Reencontro do Pari, em outubro passado. Antes, morou de aluguel na Zona Sul, mas ficou desempregada e não conseguiu apoio familiar. “Por minha filha Isabella ser uma menina trans, minha família não nos acolheu e fomos parar na rua. Até em cemitério e em garagem de hospital eu já dormi”, diz Daniela, que se prepara para a próxima etapa do programa. “Já encontramos um apartamento na Bela Vista e agora estamos vendo se vai dar certo. Apesar de gostar daqui, já estamos com a cabeça na próxima jornada, com mais autonomia e prontas para receber visitas”, diz Daniela.

Imagem mostra mãe e filha em Vila Reencontro
Daniela (à esq.) e Isabella: “Dormimos até em cemitério” (Léo Martins/Veja SP)
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Ao se mudar para as vilas, as famílias ganham um pouco mais de privacidade do que nos abrigos tradicionais, mas devem seguir algumas regras, como a que proíbe visitas externas. Para as crianças, há a obrigatoriedade de matrícula e de frequência mínima de 75% na escola, além da carteira de vacinação sempre em dia.

Nos espaços, não é permitido o consumo de bebidas alcoólicas (e drogas). Caso algum morador seja flagrado (não há revistas pessoais) pelos assistentes sociais com sinais de embriaguez, mesmo que não tenha ocorrido consumo na área coletiva ou nos módulos, a pessoa pode ser excluída do projeto.

Além das regras “inegociáveis”, há também as que foram estabelecidas pelos próprios habitantes. Em conjunto, eles definem os horários de silêncio e o de entrada e saída dos moradores. Se alguém precisar chegar mais tarde ou sair mais cedo, deve comunicar à direção do espaço, que avalia caso a caso.

No dia a dia, todo o serviço coletivo é feito pelos próprios moradores. Há grupos de distribuição das alimentações, de cuidados da horta, do funcionamento da lavanderia e até mesmo da varrição de pátios, salas e parquinhos. “Tudo isso faz parte do processo de autonomia que buscamos. Se a pessoa não limpar o seu módulo, ninguém vai limpar. Nos espaços coletivos é a mesma lógica”, afirma Maria Caetano, coordenadora do programa Vila Reencontro.

Imagem mostra Maria Caetano, funcionária da prefeitura
Maria Caetano, no Pari: busca constante pela autonomia das famílias (Léo Martins/Veja SP)
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Considerada dentro e fora das vilas como a “mãe” do programa, Caetano já viu casos de famílias que não se adaptaram às regras e “regrediram uma casa”, retornando aos abrigos tradicionais. “Cada família tem sua história, seu estágio, e nós respeitamos todas elas. Se alguma não se adapta, poderá ter outra chance quando sentir que tem capacidade de conquistar a autonomia.”

Já adaptado após chegar há três meses na vila do Pari, o desempregado Josué Ribeiro, 58, está prestes a conseguir um emprego na mesma área que o “salvou”. Recentemente, ele recebeu uma proposta para atuar como agente de saúde na Secretaria de Desenvolvimento e Assistência Social (Smads). “Nos conhecemos na Cracolândia há cinco anos e agora ele retornará para trazer outras pessoas para cá”, diz a vendedora Adriana Ribeiro, 44, “Quando vi que queria ficar com ele, pedi para Deus nos dar uma forma de escapar das drogas. O resultado é o Josué, que tem o mesmo nome do pai”, afirma, se referindo ao menino de 4 anos.

Apesar do otimismo da família, a vaga para Ribeiro ainda não estava confirmada até a última sexta (16). “Vamos empregá-lo, sim, está tudo certo”, promete o secretário de Desenvolvimento e Assistência Social, Carlos Bezerra Júnior.

Família Ribeiro, no Pari: promessa de emprego e de mudança de vida
Família Ribeiro, no Pari: promessa de emprego e de mudança de vida (Léo Martins/Veja SP)

A despeito dos inúmeros benefícios que medidas como a Vila Reencontro proporcionam para pessoas que foram parar nas ruas, não é sempre que a vizinhança vê a chegada dos novos moradores com bons olhos. Em novembro passado, durante uma visita a uma unidade que será entregue no Jabaquara, na Zona Sul, o prefeito Ricardo Nunes foi alvo de manifestantes. “Atearam fogo a pneus para protestar, mas eu fui lá e disse que não serão bandidos, não serão drogados que viverão ali. São pessoas que precisam de um acolhimento”, afirma Nunes. O passo seguinte foi convidar os futuros vizinhos para conhecer o projeto.

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Vila em Santo Amaro: críticas prévia
Vila em Santo Amaro: críticas prévia (Prefeitura de São Paulo/Divulgação)

Em Itaquera, na Zona Leste, um abaixo-assinado também pede o cancelamento do projeto no bairro. “Não vamos retroceder”, assegura o prefeito. Quando a Vila Reencontro do Pari começou a ser construída, os vizinhos também se uniram para brecar a empreitada. “Nosso temor era que as vilas atraíssem sujeira e moradores de rua para as calçadas em frente, mas agora vimos que não tem nada. Se não fosse pela placa, nem saberíamos que existe um equipamento da prefeitura”, diz o motorista Alberto Matoso, que pensou em assinar a manifestação, mas depois desistiu.

Os próximos passos das vilas Reencontro preveem a construção de módulos maiores, para comportar núcleos familiares de até oito integrantes. Para esse público, os espaços serão de 36 metros quadrados. Também haverá estruturas para pessoas com deficiência, na mesma medida de 36 metros quadrados. “Nossa maior alegria é quando a família sai da vila, pois sabemos que ela conquistou sua autonomia e vai seguir seu caminho com dignidade e esperança renovada”, afirma Vítor Sampaio, chefe de gabinete do prefeito e responsável direto pela execução do projeto da Vila Reencontro.

Ricardo Nunes e Victor Sampaio (à dir.), no Pari: “Não vamos retroceder”
Ricardo Nunes e Vitor Sampaio (à dir.), no Pari: “Não vamos retroceder” (Léo Martins/Veja SP)

Foi justamente o que ocorreu com Gilmara Gonçalves, a primeira personagem desta reportagem. “Hoje assinamos nosso contrato de aluguel e vamos nos mudar em breve para uma casa um pouco maior, na Vila Maria (Zona Norte), que tem até um quintalzinho”, disse Gilmara a Vejinha, no dia em que completou 37 anos.

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Vila em Santo Amaro: críticas prévia
Horta coletiva: trabalho dividido (Prefeitura de São Paulo/Divulgação)

 

Capa da edição desta semana
Capa da edição desta semana (Léo Martins/Veja SP)

Publicado em VEJA São Paulo de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 288,

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