Na segunda-feira passada (15), uma obra que está entre as mais controversas de todos os tempos figurava em uma das principais prateleiras da Livraria Martins Fontes, na Avenida Paulista: Minha Luta (Mein Kampf, no original alemão), a autobiografia do ditador Adolf Hitler escrita nos anos 20 e considerada a bíblia do nazismo. No dia seguinte, o diretor executivo Alexandre Martins Fontes passou por ali e não gostou do que viu. Mandou retirar o título do destaque — apesar de defender seu direito de vendê-lo. “Não vou julgar o conteúdo de cada livro da loja, mas posso fazer uma curadoria do que é exposto”, afirma.
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O relançamento de Minha Luta é o assunto do momento entre livreiros e editores paulistanos desde que a obra entrou em domínio público, no último 1º de janeiro. O compêndio incendeia polêmicas há quase um século por sustentar ideias como a superioridade da raça ariana — com uma tentativa de trazer embasamento científico à tresloucada teoria — e o extermínio de minorias, incluindo crianças deficientes, negros e homossexuais.
Nos últimos setenta anos, o volume esteve sob a batuta do Estado da Baviera, na Alemanha, que tratava o material com máxima ressalva, quase sempre vetando sua reprodução. Em 2005, recomendou à editora paulistana Centauro, que havia publicado 2 000 exemplares sem autorização, o recolhimento dos livros, de 508 páginas.
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No mês passado, quando a necessidade do aval alemão caducou, a Centauro reimprimiu mais 5 000 cópias. Sofreu outro revés, desta vez da Justiça do Rio de Janeiro, que proibiu a comercialização naquele estado. “É um absurdo essa censura, vamos recorrer até o fim”, diz o editor Adalmir Caparros. O imbróglio pegou de surpresa outro selo de São Paulo, a Geração, que prepara uma versão crítica — prevista para sair em março — com cerca de 400 páginas de comentários de historiadores brasileiro se norte-americanos. “As notas não estarão nos rodapés, e sim entremeando o texto de Hitler, contestando mentiras e erros históricos”, explica o sócio Luiz Fernando Emediato. Uma terceira casa, a Edipro, da Bela Vista, chegou a anunciar Minha Luta, mas desistiu.
Apesar de não haver veto na capital, a obra está longe de ser consenso. As livrarias Cultura e Saraiva, por exemplo, recusaram o título. O site Estante Virtual, que comercializa o acervo de 1 350 sebos ao redor do país, orientou os parceiros a não disponibilizar o produto. “É pura incitação ao ódio contra as minorias, algo vedado pela nossa Constituição”, diz o secretário da Confederação Israelitado Brasil, Rony Vainzof, que discorda até do valor documental da escrita de Hitler.
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“A história já é muito bem ensinada sem o auxílio da obra.” O professor de direito Flávio de Leão Bastos Pereira, do Mackenzie, faz ressalvas à publicação do “texto seco” (como o da Centauro), mas é a favor da edição crítica, formato lançado na Alemanha — lá, as 2 000 páginas figuram na lista dos mais vendidos. “A proibição só cria curiosidade em torno desse livro, quando precisamos contestá-lo e desmitificá-lo”.