“São Paulo deixou de ser o epicentro do HIV no país”, diz Rico Vasconcelos
Médico infectologista e pesquisador do HC comemora queda de 55% em novos casos do vírus e analisa o cenário durante o Dezembro Vermelho
Em meio a números tão díspares Brasil afora, a queda de 55% nos novos casos de HIV em São Paulo, entre os anos de 2018 e 2023, é vista pelo meio médico e científico como algo a comemorar.
Um dos motivos para o declínio na capital foi a difusão da chamada profilaxia pré-exposição (PrEP), que consiste na combinação de dois medicamentos (tenofovir e entricitabina) responsáveis por bloquear “caminhos” que o HIV usa para infectar o organismo humano.
“Somos a cidade do país que conseguiu o melhor desempenho”, afirma Rico Vasconcelos, infectologista do Núcleo de Medicina Afetiva (NuMA), pesquisador e coordenador médico do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital das Clínicas.
Agora, o desafio, nas ações do Dezembro Vermelho, mês de prevenção ao HIV/aids e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), é replicar o modelo de políticas públicas de saúde no restante do país, onde o número de novos casos do vírus da imunodeficiência “patina”.
A campanha de conscientização ganha ainda mais urgência em consequência do surgimento de uma nova variante do HIV e do aumento de casos de tuberculose no mundo, principal causa de morte de pessoas que vivem com o vírus.
Qual é o cenário do HIV no mundo?
O novo relatório do Unaids (programa da ONU) apontou que, apesar da queda de 39% nos novos casos de HIV mundialmente entre 2010 e 2023, não é suficiente para o que almejávamos. A meta estabelecida é zerar novos casos até 2030. Como estamos indo? Não tão bem. O número atual é três vezes maior do que deveria ser. Em 2023, foram registrados 1,3 milhão de casos em todo o mundo, e a meta era 370 000. Agora vem a notícia triste. Se no mundo caiu 39%, na América Latina aumentou 9%.
E no Brasil?
Dentro do território brasileiro há um verdadeiro mosaico. Tem lugar indo muito bem e lugar indo muito mal. O bom exemplo é São Paulo. Desde 2017, quando o Ministério da Saúde publicou a política pública da prevenção combinada do HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis, a capital conseguiu o melhor desempenho. Sozinha, dá conta de quase um terço dos usuários de profilaxia pré-exposição (PrEP) do país inteiro. São Paulo fez um trabalho lindo e conseguiu botar a PrEP na rua.
O que os números dizem sobre essa postura da capital?
São Paulo está tendo uma queda invejável no número de novos casos de HIV. Desde 2018, quando a PrEP ficou disponível na prática, o município teve uma queda entre 50% e 55% nos novos registros a cada ano. A região central de São Paulo, que por décadas foi o epicentro da epidemia de HIV no país, teve uma queda maior ainda, de 74%. Foi onde ela conseguiu disponibilizar a prevenção combinada com mais intensidade.
Por que outros municípios e estados não obtêm esse resultado?
O principal motivo é o preconceito e o conservadorismo. São pessoas que pararam na década passada e acham que se resolve a epidemia complexa de HIV com uma palavra: camisinha. Nenhum lugar do mundo conseguiu. Hoje, é impossível imaginar um controle da epidemia sem a PrEP.
Qual é o impacto do preconceito?
Existe uma carência de informações no imaginário dos profissionais de saúde e da população. Os estigmas funcionam como barreira para que as pessoas tenham acesso à saúde. Chegando em 2025, com tantas ferramentas nas mãos, percebemos que não basta a tecnologia, precisamos abordar questões mais espinhosas, como educação sexual e garantia dos direitos individuais.
“Os estigmas funcionam como barreira. Não basta a tecnologia, precisamos abordar questões como educação sexual e direitos individuais”
Rico Vasconcelos
Atualmente, a profilaxia pré-exposição tem modalidade diária e sob demanda, que ocorre quando a pessoa tiver uma possível exposição. Que novos métodos são estudados?
Um deles é a PrEP intramuscular, aplicada a cada dois meses, no glúteo. Outro é a PrEP subcutânea, a cada seis meses, na barriga. As duas tiveram resultados excelentes nos estudos que conduzimos no Hospital das Clínicas, superiores aos dos comprimidos diários. É mais fácil garantir que uma pessoa tome corretamente a injeção a cada dois ou seis meses do que um comprimido por dia.
E a prevenção de outras infecções sexualmente transmissíveis?
Existem dois projetos para uma nova tecnologia no Brasil, que estão para começar. É a DoxiPEP, um antibiótico antigo, a doxiciclina, usada como profilaxia pós-exposição (PEP), que consiste no uso urgente de medicamentos antirretrovirais após uma possível exposição com o objetivo de reduzir o risco de infecção. Temos alguns estudos franceses e americanos dizendo que o uso é muito bom para prevenção de sífilis e clamídia e mais ou menos para gonorreia. Vamos fazer um estudo em São Paulo, avaliando a tecnologia no Brasil.
Como estão os números das ISTs?
Temos uma curva crescente de incidência de sífilis. Essa e outras infecções bacterianas só estão aumentando. Por isso, o método da DoxiPEP é muito bem-vindo. Os Estados Unidos já estão usando.
A mpox representa preocupação?
De 2022, quando houve a explosão de casos, para cá, aconteceram pequenas ondas. Duas coisas me preocupam. Em 2024, ocorreu uma onda um pouco maior. No meio do ano nós já tínhamos mais casos do que em 2023 inteiro. Está acontecendo neste momento uma interiorização dos registros. A outra preocupação é que surgiu na República Democrática do Congo um subtipo novo, mais transmissível e letal. No Brasil, ainda não chegou. A onda atual ainda é do subtipo de 2022. Fizemos muito pouca coisa. Compramos pouquíssimas doses de vacina. Perdemos uma oportunidade boa.
Há chance de vacina e cura para HIV?
A comunidade científica internacional continua pesquisando. Os exemplos bem-sucedidos de cura são situações que não são interessantes do ponto de vista de saúde pública. Eram pacientes que, além do HIV, tinham doenças reumatológicas e fizeram transplante de medula óssea. Foram sete pessoas que conseguiram se curar da leucemia e do HIV, só que às custas de um procedimento prejudicial à saúde. Ninguém que está em tratamento antirretroviral, saudável, bonito, vai topar passar por isso e correr risco de morrer, ficar cego ou paraplégico. Por enquanto, o que a gente indica é o antirretroviral e manter a carga viral indetectável, para viver com saúde e qualidade de vida.
Publicado em VEJA São Paulo de 6 de dezembro de 2024, edição nº 2922