O advogado paulista que produz medicamentos à base de Cannabis
Produto pode reduzir sintomas de doenças como epilepsia e Parkinson
Com reportagem de Mariana Gonzalez
Na tarde da sexta 10, a empresa Entourage Phytolab, na região de Campinas, recebeu uma carga um tanto inusitada: 10 quilos de maconha, vindos do Canadá e divididos em seis potes de plástico, avaliados em 200 000 reais.
Seria uma notícia digna das páginas policiais não fosse por um motivo: a encomenda é legal, pois conta com o conhecimento e a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O carregamento chegou ao país, na verdade, em novembro. Ficou preso na alfândega do Aeroporto de Guarulhos todo esse tempo, aguardando liberação do Ministério da Agricultura e da Receita Federal.
Esse material será usado para desenvolver o primeiro medicamento com o extrato da erva no país — no caso, um fitoterápico para aliviar os sintomas de epilepsia refratária, a forma mais agressiva da doença. As pesquisas para achar a melhor fórmula devem começar a ser feitas nos laboratórios da Universidade Estadual de Campinas após o Carnaval — o contrato de parceria entre a Entourage e a Unicamp deve ser assinado até o fim do mês.
“Nossa intenção é iniciar os testes em seres humanos no segundo semestre”, diz o advogado Caio Santos Abreu, de 38 anos, fundador da empresa e idealizador do negócio. “Queremos pôr o produto à venda em dois anos.” Enquanto a papelada não for assinada, a erva ficará armazenada no refrigerador da companhia a uma temperatura de 2 graus. Isso demandou precauções extras.
Um sistema de câmeras e alarmes, além de uma equipe de quatro seguranças armados, que se revezam 24 horas por dia, toma conta da mercadoria. Os remédios à base de Cannabis, em geral, têm como princípio ativo o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Apesar de o THC ser psicoativo, os medicamentos não causam “barato”, como o cigarro de maconha. Neles, a quantidade de THC costuma ser pequena, e a substância é neutralizada pelo canabidiol manipulado em laboratório.
Além disso, não contêm outros alucinógenos presentes na erva. O remédio da Entourage será o primeiro do gênero 100% brasileiro, da concepção à distribuição. A vantagem disso é que, além da facilidade de encontrá-lo nas farmácias, seu preço deverá ser mais acessível: pode chegar a ser até 30% mais baixo que o dos equivalentes vindos de fora, segundo estimativas da empresa.
Hoje, todos os medicamentos à base de Cannabis que chegam aqui são importados. Para trazê-los ao Brasil, é preciso autorização da Anvisa. Um frasco (ou lote de seringas de aplicação) custa entre 1 300 e 1 600 reais. Em alguns casos, dependendo da dose, pode sair até mais caro.
No mês passado, a Anvisa aprovou a comercialização no país do Mevatyl, que atenua os sintomas de pacientes com esclerose múltipla. Fabricado por um laboratório britânico, estará disponível a partir de julho, mas também não deve sair barato. Na Europa, seu preço é de 400 euros, o equivalente a 1 300 reais.
Formado em direito, Abreu não fazia ideia do que era esse medicamento até 2005, quando sua mãe, a pedagoga Sueli Santos Abreu, foi diagnosticada com câncer no reto. “Devido à quimioterapia, ela passou a ter fortes enjoos e indisposição para se alimentar. Foi desesperador.” O advogado começou a pesquisar sobre a doença na internet e descobriu que a erva seria capaz de aplacar esses efeitos colaterais.
Como não havia possibilidade alguma de importá-la — a Anvisa só começou a permitir isso, sob consulta, em 2015 —, passou a comprar o produto no mercado negro. “Após o uso, o resultado foi imediato”, relembra. “No mesmo dia, ela voltou a comer e pôde reduzir a quantidade de analgésicos.” Sueli morreu em 2009.
Depois disso, Abreu esqueceu-se do remédio. Continuou tocando seu escritório de advocacia na Rua Tabapuã, no Itaim, e, alguns anos depois, conheceu sua atual esposa, a instrutora de ioga Talita Abreu, 35. O casal tem dois filhos, Bento, 4, e Teo, 2. O assunto só voltou à tona em 2014, quando ele participou de um simpósio sobre Cannabis medicinal. “Mudou minha visão de mundo. Percebi que tinha de trabalhar com isso”, comenta.
Em 2015, Abreu fundou a Entourage Phytolab, startup dedicada ao estudo e à produção de remédios à base da erva, e, no ano seguinte, largou o direito. Hoje, a empresa conta com seis funcionários e trinta consultores, entre farmacêuticos, cientistas e agrônomos. Sua sede fica na região de Campinas porque o advogado decidiu se mudar da capital para lá, com a família, em novembro do ano passado. “Queria mais tranquilidade para os meus filhos”, explica.
O antigo escritório de advocacia do Itaim virou um espaço para reuniões relacionadas ao novo negócio. Para obter financiamento, Abreu fez oito viagens para Canadá, Estados Unidos, Itália, Polônia e Holanda entre 2014 e 2015. Conseguiu captar 11 milhões de reais com dez investidores, entre eles a Canopy Growth, canadense que também forneceu a matéria-prima.
É esse montante que paga as despesas com pesquisas e também o salário do pessoal, inclusive o de Abreu. “Hoje, ganho um terço do que recebia como advogado. Mas estou realizado.” O remédio de maconha é permitido em mais de trinta países, uma lista que inclui Estados Unidos, Suécia e Alemanha.
Muitos deles utilizam a fibra da planta até para produzir roupas e sapatos. “A melhor forma de regular o acesso é pela produção nacional. Lá fora, isso é uma realidade há muito tempo”, opina Renato Filev, neurocientista da Unifesp. Além da proposta da Entourage, há um projeto da USP de Ribeirão Preto para a construção de um centro de pesquisas sobre a Cannabis medicinal até o fim do ano.
“O objetivo é atender crianças e adolescentes com epilepsia refratária”, relata Antonio Waldo Zuardi, coordenador do projeto.
Enquanto essas propostas não avançam, milhares de famílias ainda dependem da autorização da Anvisa para importar um dos onze remédios que constam na lista da agência.
Desde 2014, o órgão registrou 2 077 pedidos de liberação de importação, dos quais 329 foram feitos por paulistanos. Entre eles está o da designer de brinquedos paulista Débora Mehlberg, 58. Seu filho, George Mehlberg, 23, é portador da síndrome de Dravet, um tipo de epilepsia severa, e a Cannabis atenua as crises de convulsão. “Temos de gastar 1 900 reais por mês para trazer as seringas dos Estados Unidos”, afirma.
A bancária paulista Maria Aparecida de Carvalho, 48, e o marido, o vendedor Fábio de Carvalho, 50, foram além. Em dezembro, conseguiram autorização judicial para cultivar a planta em casa e produzir artesanalmente o extrato para sua filha, Clarian, 13, que também sofre de síndrome de Dravet. É o único caso na capital. “Graças à terapia, ela hoje sobe escadas, corre e pula como qualquer outra menina da mesma idade”, comemora Maria Aparecida.
Princípios ativos
Das mais de oitenta substâncias da Cannabis sativa, duas são utilizadas em tratamentos de saúde: o tetraidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD).
Como os remédios são feitos
O extrato da planta é processado e produzido em forma de óleo, cápsulas e spray.
Indicações
Para reduzir sintomas de doenças como epilepsia, esclerose múltipla e Parkinson, além de amenizar dores crônicas e os efeitos da quimioterapia.
Química
As substâncias atuam como anticonvulsivo natural. O THC relaxa a musculatura e o CBD protege o sistema nervoso.
Comercialização
Para tratamento médico, é permitida em mais de trinta países, entre eles Canadá, Estados Unidos e Alemanha. No Brasil, o Mevatyl, remédio fabricado na Inglaterra como spray oral, é o único aprovado pela Anvisa para venda no país. Ele chega às farmácias em julho. Para importar outros onze remédios do gênero, é preciso pedir autorização ao órgão.
Preço
De 1 300 a 1 600 reais.