Meditação para manejar o stress e conhecer a própria mente
Cresce entre paulistanos a busca por aplicativos, cursos (tem até para as crianças), livros e vídeos sobre a prática milenar
Diante de mais de 1 250 pessoas um tanto afoitas para conhecer os resultados e lançamentos do YouTube, uma convidada sobe ao palco e muda o clima do ambiente. Monja Coen também é youtuber (o Canal Mova soma mais de 1,2 milhão de inscritos). No lugar da euforia de muitos palestrantes do evento Brandcast, realizado em setembro, porém, ela propõe um exercício de respiração consciente. “Sente-se da metade para a frente da cadeira, sinta o encaixe do crânio na cervical, coloque as mãos uma sobre a outra com os polegares se tocando bem suavemente, como se tivesse uma folha entre eles”, conduz a fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil, localizada no Pacaembu. “Com os olhos pousados à frente, inspiramos e soltamos o ar abrindo a glote, fazendo um sonzinho.”
Uma parcela do público ignora a instrução e permanece de celular na mão, pronta para gravar a monja-celebridade. A maior parte, porém, topa a sugestão e, por alguns instantes, se permite um estado mais aguçado de consciência. “Acredito firmemente que a meditação será um dos elementos de transformação social e política de toda a humanidade”, defende Coen.
Tal convicção é compartilhada por muitos mestres — e está longe de ser um fenômeno recente. “A meditação, como prática, não teria se sustentado por tantos milênios se não tivesse uma eficácia”, afirma Lia Diskin, cofundadora da Associação Palas Athena. “Mas uma onda de popularização forte começa quando Jon Kabat-Zinn cria, nos anos 70, o protocolo de mindfulness sem viés religioso.” Em português, a expressão “atenção plena” tenta dar conta da habilidade de concentrar-se completamente no que está sendo feito no momento (você, leitor, por exemplo, pode estar apenas focado nessas palavras ou tentando conciliar a leitura com preocupações sobre os planos para o fim do ano, talvez).
Criado em 2007 pelo engenheiro Chade-Meng Tan, então funcionário do Google, o programa Search Inside Yourself passou a aplicar as técnicas mindfulness em treinamentos corporativos, alcançando a marca de mais de 50 000 alunos em cinquenta países. “Era um pouco cética, achava que a proposta era marqueteira, mas cheguei à formação e encontrei toda a fundamentação teórica da neurociência e inteligência emocional de que as empresas e pessoas precisam”, conta Ana Caner, instrutora certificada do SIY no Brasil com doutorado em neurociência e comportamento pela USP.
A tecnologia dá uma ajudinha para quem busca um primeiro contato com exercícios de meditação. Na liderança do seguimento, o aplicativo americano Calm lançou em novembro uma versão em português. Na sede da empresa, em São Francisco, na Califórnia, os funcionários se reúnem às 10 da manhã para uma prática coletiva. Aqui, o coworking aFlora, em Pinheiros, tem hábitos semelhantes. A sala de reunião virou estúdio de meditação, com atividades para promover o relaxamento no fim do dia. “Desenvolvemos ainda outras ferramentas, como a escolha da virtude do dia, enviada aos colaboradores por WhatsApp como um guia de conexão com o mundo interno”, conta Marcelle Martins, uma das fundadoras.
Em comum, as iniciativas buscam aumentar a qualidade de vida dos praticantes e diminuir a ocorrência de síndromes como esgotamento mental. “No Brasil, o Ministério da Saúde dedica menos de 1,5% de seu orçamento a serviços de saúde mental, enquanto as taxas de incapacidade por depressão e ansiedade continuam a subir”, afirma Mavis Brefo, diretora de expansão internacional do Calm. “Estamos comprometidos em trazer mais conteúdo ao mercado.” Versões nacionais, como o Vivo Meditação, que teve 1,3 milhão de downloads desde o lançamento, em 2017, também vêm ganhando terreno. A voz por trás do programa da Vivo é de Satyanatha.
Autoproclamado um “monge infiltrado” na cidade, ele é autor do livro Seja Monge, publicado pela Companhia das Letras, do podcast Conversas do Silêncio e do Momento Foco, da Escola Móbile, que usa tablets e cards para ajudar os alunos a desenvolver confiança emocional e encontrar inspiração, entre outros propósitos. “Se o conteúdo é importante, tem de chegar por todos os veículos”, afirma Satyanatha. “Ouvimos o relato de um aluno que viu a mãe muito brava no trânsito e falou ‘respira, mamãe, faça um momento foco’.”
Proprietária do Espaço Natividade, sede de diversos encontros de meditação na Vila Nova Conceição, Ligia Braga vê como um sinal dos tempos o aumento da procura do público por essas sabedorias. “Estamos sendo colocados contra a parede, ou a gente acorda ou não dá mais”, diz Ligia, que medita toda manhã. Outra praticante antiga que transformou o hábito em profissão é a jornalista Mariana Ferrão.
Há dois meses, ela estreou a plataforma de saúde Soul.Me. “Fazemos inúmeras escolhas ao longo do dia, e elas têm a ver com quanto nos conhecemos”, afirma Mariana. “A meditação entra como uma ferramenta para fazer escolhas, até das palavras que vamos usar.” Em meio ao frenesi ligado à meditação, a revista acadêmica Perspectives on Psychological Science publicou dois anos atrás o artigo “Mind the hype”, algo como “Cuidado com os modismos”.
Trata-se de uma avaliação crítica das pesquisas sobre mindfulness. “Estamos em um momento de pôr as coisas em proporção. A meditação não é uma panaceia como as pessoas vendem, muitas vezes as promessas estão além da realidade”, diz a neurocientista do Hospital Israelita Albert Einstein Elisa Harumi Kozasa. Isso não significa que ela não traga benefícios reais. Elisa conduz no hospital, que é uma das referências em medicina de ponta no país, uma formação em gestão emocional nas organizações.
O programa de um ano instrui em diferentes técnicas de meditação para o equilíbrio emocional e inclui um retiro. Os mais críticos costumam usar o termo “McMindfulness”, cunhado pelo professor americano Ronald Purser, para designar uma espécie de meditação fast-food. “Minha questão é que estamos atrelando a meditação ao campo da saúde individual, e seu propósito original sempre foi ampliar a percepção da realidade”, afirma a estudiosa Lia Diskin.
“A principal diferença do caminho budista para as técnicas isoladas é a visão de sabedoria e a motivação compassiva. Muitas pessoas usam o foco na respiração, por exemplo, com motivação autocentrada: apenas para ficar bem, ser mais produtivas, tentar resolver sua vida etc.”, declara Gustavo Gitti, do Centro de Estudos Budistas Bodisatva. “Se você quiser mesmo se transformar, abrir a visão e ampliar sua motivação é infinitamente mais importante do que saber a técnica. A técnica é fácil.”
Em um trecho da entrevista de Yuval Harari no Roda Viva, em novembro, o historiador israelense declarou: “Antes, se você negligenciasse o esforço de conhecer a própria mente, ninguém de fora podia olhar para dentro de você. Agora, isso é muito urgente. Você precisa conhecer a si mesmo e a suas fraquezas mentais melhor do que o governo, o Facebook ou a Amazon as conhecem”. Sua fala, que viralizou no WhatsApp, lembrava a responsabilidade de cada um por essa tarefa. “A única pessoa que pode explorar sua mente é você mesmo. Portanto, eu encorajo todos, da pessoa mais pobre à mais rica: no século XXI, vocês precisam se conhecer melhor”, completou Harari. Que tal começar agora?
Nos livros, na internet e ainda no consultório
Quando deixou o monastério de Kauai Aadheenam, Satyanatha sentia um chamado para dividir com o mundo o conhecimento que o havia transformado. “A ferramenta mais poderosa que descobri para ser monge é a meditação, por isso escrevi um livro com 28 versões dela”, conta o autor de Seja Monge, publicado pela Fontanar, selo de bem-estar da Companhia das Letras.
Quem prefere conteúdos em vídeos numa linguagem igualmente acessível encontra desde outubro, no canal do YouTube de Mariana Ferrão e na plataforma Soul.Me, meditações guiadas para honrar o próprio caminho ou deixar passar a ansiedade, entre outras. “Comecei a meditar aos 12 anos, mas por muito tempo era escondido, eu não me sentia livre para fazer isso em público”, diz Mariana.
Hoje, diante de grandes plateias, ela conduz exercícios de olhar para um desconhecido e cultivar empatia, por exemplo. A penetração da meditação em outras esferas chega também aos consultórios médicos. “Não imaginava em 2012, quando terminei a residência, que hoje estaria envolvido com a meditação”, conta o médico oftalmologista Siro Shinti Nozaki. “Com a prática regular, há uma expansão da consciência que auxilia a enxergar melhor o paciente e sua história. Deveria fazer parte do currículo médico, como forma de preparação para a vida. Na verdade, toda pessoa deveria meditar”, defende Nozaki.
Quanto mais cedo, melhor
Não é incomum surgir a pergunta: mas as crianças podem meditar? “É claro que sim, elas até meditam melhor que os adultos, têm menos barreiras. Só a duração que é bem mais curtinha”, explica Satyanatha. Ele introduziu na Escola Móbile o Momento Foco, que será aplicado em 3 000 alunos. “O mundo precisa de crianças que meditem, que descubram que há um mundo interno de emoções e ideias.” Na Gaia+, a sede em Piracicaba tem praticantes de 6 a 10 anos. Desde 2017, a ONG desenvolve um programa de formação de professores de escolas públicas na prática. Comunicação não violenta e inteligência emocional também integram o pacote. “Mais de 8 000 pes soas participaram”, afirma um dos fundadores, Eduardo Pacifico. “Antes da Prova Brasil, soubemos que os alunos pediram ao aplicador do exame para fazer alguns minutos de meditação em grupo.”
Percepção da realidade
Uma das fundadoras da Associação Palas Athena, em 1972, Lia Diskin ministra o curso extensivo Atenção e Concentração nas Práticas Meditativas. “O aumento da procura pela meditação não é um fenômeno apenas paulista, mas mundial”, afirma Lia. “Desde o eletroencefalograma, na década de 20, começamos uma trajetória de busca de evidências que popularizou essas dinâmicas. Minha questão é que estamos atrelando a meditação ao campo da saúde individual, e seu propósito original sempre foi ampliar a percepção da realidade”, completa. “Como eu me aproprio do conhecimento de estar percebendo a realidade através dos meus filtros?”, questiona.
Medicina de ponta e práticas contemplativas
Neurocientista do Hospital Israelita Albert Einstein, Elisa Harumi Kozasa é uma meditadora experiente que pondera promessas exacerbadas: “A prática de meditação não é uma panaceia”. No Einstein, ela ministra desde 2018 o curso de Gestão Emocional nas Organizações, baseado num programa do psicólogo Paul Ekman e do professor de meditação Alan Wallace. Ela cuidou, junto com a Palas Athena, do desenvolvimento do app Meditação Natura, cuja eficácia foi tema de uma pesquisa científica. “O processo de aquietamento da mente permite ter mais clareza para distinguir preocupações ilusórias de reais. Mas não basta falar ‘hoje vou meditar quinze minutos’ se eu não começar a cuidar do manejo do meu tempo, da minha carga de exercício físico, da qualidade das minhas relações.”
Conhecimento espiritual hi-tech
Série na Netflix e aplicativos como o Calm ampliam acesso à técnica
TUDO COMEÇA NA MENTE Narrada por Emma Stone e produzida pela Netflix e pela Vox, a série documental Explicando — A Mente (2019) dedica um episódio à meditação. Para destrinchar seus efeitos no corpo, a série traz uma entrevista com Mingyur Rinpoche, que foi estudado na Universidade de Wisconsin (EUA). O pesquisador e neurocientista Richard Davidson descobriu que a atividade cerebral de Rinpoche na área ligada à empatia disparou 800% quando o monge cultivou um sentimento de compaixão através da meditação. O programa destaca que há diversas modalidades da prática: transcendental, dinâmica, contemplação religiosa, mindfulness…
BENEFÍCIO NO CELULAR Desde junho de 2017, mais de 1,3 milhão de pessoas já baixaram e usam diariamente o app Vivo Meditação. Entre os cerca de 1 000 tipos de meditação, há práticas específicas para quem deseja acolher bem as mudanças, cultivar gratidão ou amar e perdoar, por exemplo. É possível selecionar a duração delas.
UNICÓRNIO EM PORTUGUÊS O aplicativo Calm está na lista de start ups avaliadas em 1 bilhão de dólares. A empresa não foi pioneira no ramo: surgiu em 2012, enquanto o Headspace é de 2010. Desde novembro, porém, ganhou espaço no mercado nacional ao disponibilizar meditações guiadas e histórias para dormir em português. “Antes disso, já tínhamos 500 000 downloads no Brasil”, afirma a diretora de expansão internacional, Mavis Brefo. “Como o país tem o maior número de pessoas ansiosas do mundo, há possibilidade de ampliar o diálogo sobre saúde mental aqui.”
CANAIS COM MILHÕES DE INSCRITOS No YouTube, a meditação rende milhões de visualizações. Fazem sucesso o canal de Cassio Toledo (3,1 milhões de inscritos), com músicas para relaxar, o Mova (1,2 milhão), que publica conteúdo da Monja Coen, e o Clube da Meditação (1 milhão), com áudios guiados semanais.
Estátua viva e professora
Achar estabilidade no caos é uma das possíveis definições de meditação — e também do trabalho de estátua viva, função que a peruana Tania Mujica desenvolve no centro de São Paulo há mais de 10 000 horas. “Não gosto de ver a meditação como técnica, que você inicia e acaba, mas como estado de presença”, afirma Tania. “Pratico com instrutores rigorosos, porém sou grata por ter conhecido a meditação de forma desmistificada. ”Como instrutora, já atendeu mais de 200 alunos pessoalmente e alcançou milhares de espectadores com conteúdo on-line. “É uma maneira de tirar as pessoas do piloto automático, voltar para dentro e se conectar com a condição de estar vivo.”
Ioga e união livre de preconceitos
Como lidar com traumas e encontrar força para mudar questões estruturais como o racismo? Para a artista e professora de ioga Juliana Luna, a resposta passa pelo autoconhecimento. “A meditação me permitiu acessar camadas mais profundas e mergulhar na minha própria expansão”, conta a praticante, que divide seu tempo entre aulas em São Paulo e em Nova York. “Percebi quanto isso tem me salvado e pode ajudar outras mulheres negras que enfrentam uma grande carga de pressão”, diz Juliana. Algumas de suas alunas relataram situações de preconceito ao frequentar outros estúdios. Por isso ela organiza experiências para mostrar que a prática não é para poucos, mas para todos. “Por meio da meditação, passamos a olhar para nós mesmos com mais compaixão e consciência de que não somos só esse corpinho que está perambulando por aí. Essa percepção é fundamental para mantermos o centro emocional.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666.