Trânsito intenso, obras por todo lado (e em qualquer horário), violência urbana, insegurança… Maior cidade da América Latina, São Paulo é uma fonte inesgotável de estímulos para a ansiedade. Somem-se a eles os problemas particulares no trabalho ou na família, a dificuldade em estabelecer rotinas e a dependência cada vez maior de aparelhos eletrônicos, típica da era digital, e o resultado será: dorme-se de mal a pior na capital.
Um estudo da Associação Brasileira do Sono de 2021, instituição sem fins lucrativos que reúne profissionais especializados e que até o domingo (17) realiza uma espécie de jornada sobre o tema, aponta que 70% dos brasileiros se queixam de problemas para dormir, um salto significativo em relação ao dado anterior, que era de 44% (pré-pandemia).
Em 2007, a terceira edição do Episono, sigla para Estudo Epidemiológico do Sono, também realizado pelo Instituto do Sono, já demonstrava que mais de 60% da população de São Paulo sofria com alguma perturbação na hora de dormir. Ou seja, não é de hoje que o paulistano já não descansa com tranquilidade. As longas jornadas de trabalho e o uso exagerado dos aparelhos eletrônicos têm ajudado a elevar as estatísticas de insônia. “Há uma epidemia de privação de sono na sociedade moderna. Nossa biologia não se adaptou à exposição constante de luz azul dos celulares e computadores”, afirma Sergio Brasil Tufik, médico pesquisador do instituto e filho de Sergio Tufik, o fundador.
Ao lado da insônia, a apneia é um dos distúrbios de sono mais comuns no mundo. Ela acontece quando a passagem de ar para os pulmões é comprometida pelo relaxamento das paredes da faringe e pela queda da língua para trás, causando pequenas paradas respiratórias e ronco. As causas da apneia estão relacionadas ao aumento dos índices de obesidade e da expectativa de vida da população, já que sobrepeso e envelhecimento são fatores de risco para o desenvolvimento da doença.
Algumas pessoas, no entanto, já nascem com predisposição ao distúrbio, devido a características anatômicas e metabólicas. É o caso do otorrinolaringologista e presidente da regional paulistana da Associação Brasileira do Sono, George Pinheiro, 42. Há dez anos ele foi diagnosticado com apneia, justamente quando fazia residência em medicina do sono na Universidade de São Paulo (USP). “Eu roncava muito e me sentia muito cansado, travava uma briga diária com o despertador. Comentei com um dos meus tutores na faculdade e fiz a polissonografia, que mostrou um grau acentuado de apneia”, diz.
Desde então, ele dorme com um CPAP sigla para continuous positive airway pressure (em português, pressão positiva contínua nas vias aéreas), aparelho colocado no rosto, como uma máscara, que envia um fluxo de ar constante para as vias respiratórias, evitando sua obstrução. “O meu caso está relacionado a um fator neuromuscular, pois meus músculos não conseguem se manter com tônus adequado enquanto durmo”, explica.
Durante anos, o advogado aposentado Nelson Pietroski, 64, teve de lidar com o cansaço frequente e os cutucões da esposa, que chegava a se assustar com seus roncos. Também diagnosticado com apneia, ele nunca se adaptou ao CPAP, aparelho que, embora eficaz, nem sempre é prático. “Já aconteceu de eu viajar, chegar em um hotel de última hora e não ter tomada para conectá-lo perto da cama”, conta.
Em 2022, depois de tentar outros tratamentos, ele conheceu o Dr. Eric Thuler, médico especializado nos distúrbios respiratórios do sono, que atende no centro especializado do Vila Nova Star, hospital particular na Vila Olímpia. E foi um dos primeiros 100 pacientes a passar por uma cirurgia de expansão da faringe feita com o auxílio de um robô. O procedimento eliminou a obstrução de ar, o que possibilitou que Nelson se curasse. “Foi extraordinário. Quem nunca teve dificuldade para dormir não entende o que é descansar de verdade pela primeira vez”, comemora.
Além da cirurgia, o Dr. Eric Thuler, que também é professor-assistente da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, desenvolve outros procedimentos alternativos ao CPAP no centro especializado do Vila Nova Star, inaugurado no ano passado e que atende cerca de sessenta pacientes por mês. “Desenvolvemos uma endoscopia para avaliar fluxo e pressão durante um sono induzido, uma técnica para expandir a arcada dentária e liberar mais espaço para as vias aéreas, e um marca-passo que não deixa a língua colapsar durante o sono”, conta o médico.
Se, por um lado, os especialistas acreditam que, em meio a um mundo cada vez mais digital, a tendência é que as pessoas durmam menos, e pior, por outro, eles notam uma preocupação maior da população com o tema. A boa notícia: a variedade de opções de tratamento, incluindo métodos alternativos, nunca foi tão grande. Uma terapia menos convencional que tem sido adotada por insones é o uso de canabidiol, ou CBD, uma das substâncias presentes na Cannabis.
A gestora Vanessa Cerboncini, 43, começou a ter problemas para dormir quando seu filho nasceu, há mais de vinte anos. Ela só começou a estranhar as noites em claro quando o menino fez 3 anos. “No início, achei que era normal, pois estava cuidando de um bebê”, lembra. O problema evoluiu a ponto de ela passar mal com frequência e desenvolver enxaqueca. “Eu estava sempre exausta, me sentia privada de mim mesma. Evitava dirigir, com medo de apagar”, lembra.
Depois de tentar diversos antidepressivos e remédios fitoterápicos — aqueles cujos princípios ativos vêm de plantas ou derivados vegetais —, uma médica recomendou o canabidiol. Pouco mais de um ano após o início do tratamento, Vanessa sente que se livrou da insônia. “O efeito é muito bom e muito rápido, melhorou até as cólicas menstruais”, afirma.
Terapias como a fitoterapia, a aromaterapia (que utiliza óleos essenciais) e a cromoterapia (que se baseia na capacidade terapêutica das cores, através de lâmpadas coloridas) trabalham o autocuidado e a preservação da saúde de forma complementar e integrada. “Existem diversas práticas como a acupuntura ou a auriculoterapia, nas quais é possível conduzir a pessoa a um sono melhor”, garante a enfermeira Talita Pavarini, coordenadora do Grupo de Práticas Integrativas e Complementares do Coren-SP.
Essas abordagens terapêuticas, também chamadas de Pics, foram institucionalizadas através de uma política nacional em 2006. Antes estigmatizadas pela medicina convencional, hoje 29 delas são ofertadas no Sistema Único de Saúde (SUS). Na capital paulista, a Saúde municipal foi pioneira e instalou uma área técnica em 2001 para capacitar profissionais, que em sua maioria não possuem essa formação na faculdade.
“Oferecemos práticas corporais chinesas, como o lian gong e o tai chi chuan, meditação e ioga, interessantes para tratar a insônia, que permeia quadros mentais como estresse e ansiedade”, conta o Dr. Adalberto Kiochi Aguemi, coordenador de Saúde Integrativa do município. As Pics estão presentes ainda nas UBS, em algumas unidades de atenção especializada, a exemplo dos Caps e das Unidades de Referência em Saúde do Idoso. “Para casos simples de problemas relacionados ao sono, indicamos o uso de plantas medicinais. É uma abordagem primária. Outras envolvem o agendamento com um profissional”, afirma Aguemi.
No Hospital Sírio-Libanês, o Núcleo de Cuidados Integrativos possui vinte profissionais atuando em práticas como ioga, meditação, tai chi chuan, reiki e musicoterapia. “Nosso vício ocidental é olhar para uma parte, mas quando pensamos em saúde temos que ter uma visão integral. Não dá para pensar na saúde do sono sem pensar nas esferas física, emocional e mental”, afirma Plínio Cutait, coordenador do núcleo.
Com foco na integralidade, essas práticas geralmente são indicadas em associação. A aromaterapia, por exemplo, é muito associada com a prática meditativa e o reiki para a melhora do sono. Isso porque os óleos essenciais, extraídos de caules e flores, possuem propriedades relaxantes, calmantes e sedativas. Disponíveis em farmácias e de fácil utilização, esses artigos se popularizaram. “Apesar de naturais, os óleos essenciais são produtos químicos, e é preciso cuidado com a dosagem. Por isso, é importante fazer uma avaliação prévia para averiguar o uso mais adequado”, alerta Talita.
Eles podem ser utilizados de duas formas: a olfativa, quando o sistema nervoso central recebe a informação através da inalação, e a cutânea. Essa última exige diluição em óleo vegetal, já que a maior parte dos óleos essenciais não pode ter contato direto com a pele. “São indutores do sono, terapêuticos, mas não são medicamentos. Importantes como auxiliares, mas, claro, em casos graves, de insônia crônica, deve-se procurar um médico”, destaca a farmacêutica Leila Nassur, da PharmaSpecial. Os mais conhecidos para esses efeitos são os de lavanda, de bergamota e de ylang-ylang (veja no quadro à esquerda).
Adeptos dos óleos essenciais e de outras terapias alternativas encontram cada vez mais opções na cidade. O PhytoSPA, por exemplo, spa urbano da Phytoterápica, localizado no Tucuruvi, oferece terapias complementares e utiliza aromatizadores com óleos essenciais em todos os ambientes. “O maior objetivo é cuidar da mente e do corpo, do bem-estar da pessoa. Normalmente, quem nos procura já passou ou passa por tratamentos médicos convencionais e busca também caminhos integrativos”, fala a psicoaromaterapeuta Raquel Junqueira.
Com mais pessoas em busca de um sono melhor, surgem novos produtos e serviços especializados no relaxamento. É o caso do Vitória Hotel Concept Campinas (veja o quadro), que lançou no ano passado uma suíte voltada ao chamado “turismo do sono”. O quarto é adaptado com mobiliário especial e equipado com amenities selecionados sob medida para quem está atrás de uma boa noite de sono.
“Oferecemos óleos essenciais e uma máscara de dormir com bluetooth para tocar músicas relaxantes. Temos até cama para cachorro ultra soft, caso o cliente leve o pet”, conta Eduardo Porto, diretor de marketing do hotel. Numa sociedade marcada pelo cansaço, investir na qualidade do sono em busca de noites bem dormidas não é um luxo, mas uma necessidade para manter a saúde em meio à rotina intensa dos grandes centros.
Além de todos os possíveis danos à saúde física e mental, a piora na qualidade do sono também compromete os sonhos. “É um fenômeno cada vez mais comum neste mundo em que as pessoas dormem tarde, acordam cedo e têm dificuldade de se concentrar no ato de dormir”, resume o neurocientista Sidarta Ribeiro, autor de O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho (Companhia das Letras). “Quem acorda de forma acelerada, sem dar espaço para relembrar as imagens do último sonho, eventualmente se esquece dele.” Segundo Ribeiro, a formação dos sonhos reflete momentos do estado de vigília (quando estamos acordados). “Sempre que a pessoa passa por um aprendizado novo, algo que envolve equilíbrio ou uma recalibragem do sistema motor, tem chances de sonhar muito com aquilo”, explica. Eles começam após uma hora e meia de sono e surgem mesmo para quem dormiu pouco — mas só nos lembramos do conteúdo deles ao acordar no meio ou no final do episódio. Para quem deseja controlar ou estimular sonhos específicos, a história é outra. “Os aspectos do sono são subjetivos, mas há uma influência de fatores externos: ao ouvir trovões, talvez você comece a sonhar com tiroteio; se passar uma escola de samba perto de casa, pode acabar sonhando que está em uma festa”, exemplifica Monica Andersen, professora da Unifesp e diretora do Instituto do Sono. “Para conduzir sonhos, há relatos de quem acorda no meio deles e consegue fazer apenas mudanças sutis nos personagens e no enredo. Mas isso não traz vantagens ao sono.” E o que a ausência de sonhos provoca? “Deixa sua vida acinzentada, sem cor”, diz Monica. “Essa falta nos priva da boa sensação ao acordar de manhã, já que eles conferem um bem-estar físico e psicológico. Com eles, você cria motivação e equilíbrio interno, algo que chamamos de homeostase.” Uma pesquisa da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, indicou este prejuízo: a falta de sonhos pode causar até aumento de doenças mentais como depressão e ansiedade. Fora as recomendações mais tradicionais para dormir melhor — como fazer refeições leves e evitar o uso de telas e celulares à noite —, outra substância também tem sido considerada promissora no tratamento de distúrbios do sono: o canabidiol, ou CBD, proveniente da maconha. “Ele tem utilidade para quem quer regular o sono, mas tudo depende da genética da pessoa e de qual tipo ela utiliza”, pondera Sidarta. Nas pesquisas conduzidas pelo neurocientista e expostas em seu mais novo livro, As Flores do Bem, lançado em novembro pela editora Fósforo, o uso da Cannabis também apresenta diversos impactos nos sonhos. “Os resultados preliminares têm mostrado uma grande variedade de efeitos. Muitos relatam aumento e outros diminuição na intensidade desses sonhos”, completa. (Humberto Abdo)
Publicado em VEJA São Paulo de 15 de março de 2024, edição nº 2884