A queda repentina da oxigenação do sangue e a consequente e imediata necessidade de intubação não permitem a perda de nem mais um minuto. Nessa altura, a máscara de oxigênio não dá mais conta do recado. Mesmo assim, a paciente reluta em receber a anestesia.
Ao lado dela, na enfermaria do Instituto Emílio Ribas, há dezenove internados em estado grave, todos acometidos por Covid-19. Entre preparar a medicação e convencê-la de que é melhor ser intubada agora do que após uma parada respiratória, o médico residente Matheus Gonçalves, 26, tem a ideia de ligar para o esposo da enferma. Quem sabe ele a convence. O tempo corre em seu desfavor.
Com o sinal de 4G tão fraco quanto a voz da mulher, a chamada de vídeo é interrompida. Resta a ela sussurrar uma mensagem de áudio e aceitar o procedimento. “Imagine se ela morresse na minha mão! A última coisa que o marido teria seria aquela mensagem.” Ela não morreu. Naquele dia ninguém morreu no seu plantão, mas a lotação do espaço dobrou em doze horas e já havia pacientes aguardando a internação em cadeiras.
“Tudo isso marca nosso psicológico”, diz o médico, nascido em Imperatriz, no Maranhão. Sem a mesma experiência dos especialistas mais velhos, mas muitas vezes com responsabilidades multiplicadas, os cerca de 9 000 médicos residentes do estado estão na linha de frente do combate à onda mais forte e letal do coronavírus. (A residência é uma pós-graduação obrigatória de dois ou três anos que dá ao médico um título de especialidade.) Ao lado deles, outros jovens profissionais da saúde, como fisioterapeutas, enfermeiras e psicólogos precisam encarar a fase mais aguda da pandemia no início de suas carreiras.
A rotina pesada dos recém-formados, cuja carga horária é de sessenta horas semanais e mistura medo, cansaço, tensão, entre outros sentimentos, não se resume apenas ao tempo estabelecido em lei. Com uma bolsa-auxílio de 3 300 reais mensais, o que resulta em pouco mais de 13 reais por hora, os médicos residentes precisam complementar a renda com plantões recebidos “por fora”.
“Estou exausto, psicológica e fisicamente”, desabafa Gustavo Potratz Gonçalves, 28, médico residente do Hospital Israelita Albert Einstein e plantonista do Hospital das Clínicas de São Bernardo do Campo. “Descanso só um fim de semana por mês, quando muito”, relata. Em média, um plantão extra de doze horas rende aos profissionais 1 300 reais. Muitas vezes essa é a única saída para recém-formados conseguirem custear sua vida e pagar as contas que ficaram da faculdade.
“A partir deste ano terei de pagar 2 500 reais por mês referente ao Fies (financiamento estudantil). Serão dezoito longos anos”, prevê Ricardo Mastrangi Ignácio, 26, residente de infectologia no Hospital Emílio Ribas. “Mas por causa da nossa carga horária, só consigo dar quatro plantões por mês. Se fizer mais do que isso, eu não vivo.”
Outra questão que afeta a vida acadêmica dos residentes é a suspensão de atividades ambulatoriais e procedimentos gerais ligados a outras especialidades em meio ao aumento de internações na pandemia. Na última segunda (29), havia mais de 31 000 internos nas unidades de saúde paulistas.
“A realidade dos residentes é de novamente ver suas atividades nas especialidades ser suspensas para atender aos pacientes de Covid”, relata Heloana Marinho, 26, presidente da Associação dos Médicos Residentes da USP, que conta com 1 200 alunos. “No ano passado, reivindicamos a contratação de médicos para atuar nas áreas de atendimento, para que a residência fosse mantida, mas os residentes nunca deixaram a linha de frente.”
O resultado de tanto trabalho emergencial, suprimindo as aulas práticas monitoradas, é um déficit de aprendizado que terá consequências no futuro. “Na clínica médica, as quatro semanas que perdi de pneumologia nunca mais serão compensadas”, diz o médico Mateus Gouvea, 29, que finalizou neste mês sua residência de dois anos na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No ano passado, os residentes do local fizeram uma greve contra as más condições de trabalho.
“Ninguém reclama de ser chamado nessas horas para atender os pacientes de Covid, mas o Ministério da Educação deveria estender nossas residências para diminuir as perdas.” A Comissão Nacional de Residência Médica, órgão ligado ao MEC, chegou a estudar a possibilidade de extensão, mas a medida esbarrou em custos e atrapalharia o ingresso dos novos residentes.
Não são apenas os médicos recém-formados que sofrem os efeitos do agravamento da pandemia. Sem atuar efetivamente na linha de frente, mas com incursões semanais em ambientes ambulatoriais e hospitalares, os alunos de medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), cuja mensalidade gira em torno de 9 600 reais, não têm conseguido receber a primeira dose da vacina contra a Covid-19. Como não são profissionais da saúde e não se enquadram nos grupos prioritários, os estagiários estão desprotegidos.
“Estou no sexto semestre, nossas aulas são híbridas (metade on-line e a outra parte presencial), mas fazemos estágios no Hospital da Pedreira (Zona Sul) a cada quinze dias. Falamos com médicos e pacientes, e alguns colegas podem até acompanhar partos. Mesmo na faculdade, na semana passada tivemos aula de papanicolau (exame ginecológico) e o professor precisou se aproximar dos alunos para nos explicar. É claro que há riscos (de contaminação)”, afirma a aluna Gabriela Garcia Leal Vieira, 23.
“A faculdade nos deu um papel dizendo que passamos por estágios e que poderíamos tentar tomar vacina na UBS perto de nossa casa, mas o documento não foi aceito. Lá, disseram que é a própria instituição que deveria providenciar os imunizantes. O máximo que conseguimos foi ficar numa fila de espera.” Procurada, a reitoria da Unisa não se pronunciou.
Ao mesmo tempo que o agravamento dos casos e óbitos provocados pelo coronavírus exaurem a maioria dos jovens profissionais, há quem veja no horizonte uma brecha de aprendizado incomum. “Pensei se valeria a pena perseguir meu sonho agora ou se seria melhor deixar para depois, mas vejo que tomei a decisão certa. Estou em um momento histórico da medicina”, afirma o residente Lucas Cirilo Fernandes, 27, que se mudou de Juiz de Fora (MG) para São Paulo em março de 2020, no início da primeira onda da pandemia no Brasil, e hoje atua na enfermaria e na UTI do HCor, no Paraíso.
Uma janela de oportunidade parecida com a citada por Fernandes foi aberta há doze anos para o então recém-formado infectologista Gerson Salvador. Atualmente médico do Hospital Universitário da USP e responsável por orientar os residentes do espaço, Salvador era recém-formado quando a pandemia de H1N1, ocorrida em 2009, matou 2 000 pessoas no Brasil, número bem inferior aos óbitos diários hoje no país.
“Quando a atual pandemia chegou, eu estava tecnicamente muito preparado, principalmente para manejar pacientes graves. A experiência que eu tive lá atrás foi dolorosa, sofrida, devido à carga de trabalho excessiva e à falta de contato com a família, mas me ensinou muito”, diz o infectologista, que fez residência no Hospital das Clínicas. “Diante de todas as dificuldades que passamos, muitas vezes nos vemos tirando água de um navio com o casco furado, mas superamos a H1N1 e vamos superar esta pandemia também, apesar de desta vez ser com muito mais conflitos.”
“O pior é falar para a mãe”
“Não existe forma tranquila de dar notícias de óbitos. Aprendemos desde a faculdade algumas técnicas de como conversar com familiares de falecidos, mas nunca é fácil. Também aprendemos a falar sobre diagnósticos de doenças graves, como câncer ou HIV. Somos ensinados a explicar a situação e é preciso ter muita sensibilidade. Toda vez meu olho fica marejado. Eu me coloco sempre no lugar da pessoa.
Outro dia, um casal estava internado na UTI, ambos com Covid e intubados. Conseguimos tirar o tubo da mulher e a primeira coisa que ela perguntou foi sobre o marido. Não podíamos chegar para ela e dizer que o homem tinha morrido. Esperamos a paciente estabilizar e, com a ajuda de psicólogos, ela foi informada. Mas o pior é contar para uma mãe que o filho dela partiu. O sofrimento é sempre muito grande. Ela grita, cai no chão, é sempre horrível. Ela desaba e nós desabamos junto. Não importa se o médico tem um ano ou trinta anos de formado, todos ficamos abalados.”
Maria Eduarda Rosso, 27, residente do Emílio Ribas
“Aprendi que enfermeiro une a equipe”
“Eu estava com o médico fazendo um procedimento de intubação em um paciente de Covid e de repente chega um outro que está com parada cardíaca. Uma equipe ficou com o primeiro e a outra correu para a emergência. Se acontecesse mais um caso grave, teríamos de sair correndo para encontrar mais uma equipe no hospital. Nesses casos, além do médico, é preciso ter pelo menos um enfermeiro e um auxiliar de enfermagem ao lado. Atualmente, há falta de leitos já na observação. Se um paciente precisa ir para a UTI e não tem vaga, tentamos o quarto. Se também não tiver vaga, ele fica na observação mesmo. Esse local, muitas vezes, acaba se transformando em UTI.
Estou em meu segundo estágio. No primeiro, antes da pandemia, eu lidava com profissionais de outras áreas e o cenário era mais feliz. Agora estamos numa época em que vemos tragédia o dia inteiro. Tenho aprendido aqui que o enfermeiro é o responsável por unir toda a equipe. No final do meu turno, quando chego em casa, tomo banho, vem aquela tristeza. Escolhi uma área de atuação para ajudar as pessoas, e ver casos como os atuais é a parte mais difícil. Não cheguei a pensar em desistir, pelo contrário. Sem a gente, a situação estaria muito pior.”
Larissa Freitas, 23, estagiária de enfermagem no Hospital São Camilo
No SAMU aos 23 anos
Isabela Bueno, 23, acaba de conseguir seu primeiro emprego. No dia 1º de abril, ela se tornou uma das mais jovens enfermeiras do SAMU, o Serviço de Atendimento Médico de Urgência da capital.
Formada em 2019, ela cumpriu os dois anos de residência no Hospital São Paulo, na Vila Clementino, exceto pelo mês de dezembro, quando atuou no próprio SAMU. “Eles gostaram e me chamaram para o processo seletivo”, conta. A enfermeira estreia na profissão em um momento crítico da pandemia. No auge da primeira onda de Covid-19, em junho, o SAMU atendia 106 ocorrências de síndrome respiratória por dia na cidade. Agora, são 164.
“É desafiador. Em casos de média complexidade, serei eu que vou liderar o atendimento”, diz. “É comum que pacientes graves sejam intubados na própria ambulância. Graças à residência, me sinto pronta.” Até o ano passado, o SAMU não tinha residentes e estagiários nos quadros. “A gente não dispunha de estrutura para recebê-los e acompanhá-los. Nos adaptamos para mudar isso. O resultado tem sido bom”, diz Maísa Ferreira dos Santos, coordenadora do serviço. “Todo o atendimento feito por eles é supervisionado. Os jovens trazem inovação e uma energia nova para o nosso trabalho.”
Noites de adrenalina na UTI
É surpreendente que uma jovem de 22 anos suporte a rotina de Priscila Amaral Mariano, enfermeira do Albert Einstein. Desde o início do ano passado, ela atua nas UTIs de Covid do hospital.
“Trabalho uma noite sim e outra não. Entro às 19 horas e saio às 7. Mas estamos com muitos plantões extras e chego a fazer duas noites seguidas, ou a entrar às 19 e sair só às 13 horas do outro dia”, ela conta. “Faltam profissionais com experiência em UTI no país”, diz.
O plantão da última segunda (29) foi movimentado. “Tive de cuidar de três admissões ao mesmo tempo, todos eram casos extremamente graves”, afirma. “Uma UTI de Covid é muito intensa, o cenário muda em segundos. Às vezes, chego em casa de manhã e só consigo dormir ao meio-dia, por causa da adrenalina.”
Priscila sabe que a experiência vai marcar sua futura carreira. “No começo, tinha receio de que não daria conta, mas adquiri muita maturidade.” Hoje o Einstein tem 171 leitos para Covid (eram 74 no início do ano, mas foi preciso ampliar o atendimento), que estão com lotação próximo de 100%.
Jovens psicólogos ajudam médicos
Formado em 2019, o psicólogo Felipe Blanco Nunes, 26, coordena um grupo de catorze estudantes da PUC-SP que presta atendimento a médicos, enfermeiros e familiares de vítimas de Covid-19. Duas vezes por semana, ele vai aos hospitais ouvir as queixas e encaminhar as sessões gratuitas.
“Muitos profissionais sofrem de frustração e impotência diante da doença”, diz. “Há médicos que querem desistir, ou não querem mais ficar nas UTIs.” Felipe também está sobrecarregado com os pacientes particulares que atende pela internet. “Minha agenda e a dos colegas não têm mais espaço”. Seu perfil profissional de Instagram (@cantinho_ da_psico) tem mais de 6 200 seguidores.
Força na fisioterapia
Assim como os médicos e enfermeiros, os fisioterapeutas têm sido fundamentais nas UTIs dedicadas à Covid-19. “Mesmo em pacientes sedados, nós usamos a eletroestimulação ou uma “bicicleta passiva” (o equipamento faz o esforço) para evitar que percam massa muscular”, diz Talita Rodrigues, 27, do hospital Albert Einstein. Seu primeiro dia de residência foi em 2 de março do ano passado. Enquanto recebiam as boas-vindas dos diretores, os recém-chegados liam as notícias do primeiro caso de Covid-19 no país. “Nunca imaginei viver uma situação como essa no primeiro ano de formada. No segundo mês, fui transferida para uma UTI de Covid”, ela relembra.
O paciente grave que tenta disfarçar
“A pessoa sabe que está em estado grave, mas tenta mostrar que está bem, para não ser intubada, apesar de a respiração ofegante demonstrar cansaço. Os pacientes chegam temerosos pela intubação. O receio ocorre porque, no começo da pandemia, quando não se conhecia a Covid a fundo, muita gente só falava que iria morrer sem poder se despedir de ninguém.
Outro dia, um paciente que seria intubado pediu para ligar para a família. Nesses casos, é o médico residente que faz o contato. Isso faz parte da nossa rotina de aprendizado. Falei com a família por telefone antes e depois da intubação. Falei que o procedimento correu bem e que ele estava estável. Mas esse tipo de conversa, por telefone, é muito ruim. É muito importante ter contato com a família. Quando precisamos dar uma notícia de morte, a distância é pior ainda, pois não estamos lá para consolá-los.
Desde de março do ano passado, os programas de ensino para os residentes não vêm sendo cumpridos, pois os locais de práticas, como ambulatórios, estão fechados. Todos fomos deslocados para atender exclusivamente Covid. Entre agosto e outubro, as coisas começaram a voltar ao normal, mas agora tudo piorou novamente.”
Felipe Medeiros, 28, residente no Hospital das Clínicas
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Publicado em VEJA São Paulo de 07 de abril de 2021, edição nº 2732