Avatar do usuário logado
OLÁ,

Atendentes do 190 ouvem de tudo

Palavrões, problemas pessoais, pedidos de ambulância, queixas de roubo e desabafos emocionados. Apenas 13% dos 35 000 chamados diários se tornam ocorrências policiais. Outros 21% são trotes

Por Fabio Brisolla, Fernando Cassaro, Filipe Vilicic e Sara Duarte
Atualizado em 6 dez 2016, 09h05 - Publicado em 18 set 2009, 20h29

No meio da tarde do último sábado (16), o serviço de emergências da Polícia Militar (PM) recebeu uma ligação incomum. No bairro de Taipas, na Zona Norte, uma jovem havia acabado de dar à luz sem assistência. Enquanto transferia a chamada para os bombeiros, que se encarregam de resgates desse tipo, o soldado Vagner Camargo informou a seus superiores que havia o risco de o bebê estar com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Seria preciso enviar uma viatura ao local imediatamente. Única mulher no batalhão da região, a soldado Paula Leite foi destacada para o caso. Mãe de dois garotos e há mais de onze anos na PM, ela aninhou o bebê nos braços enquanto os bombeiros cuidaram da mãe, a costureira Jussara Ricardo, de 29 anos. “Senti como se fosse um filho meu”, disse. “É instinto.” Kayo Miguel nasceu às 15 horas, com 2,98 quilos e 49 centímetros. Às 15h32, estava a caminho do hospital. A ligação que o salvou foi uma das 24 563 recebidas pelos atendentes do 190 naquele dia.

Esse até que foi um dia tranqüilo. Em média, o telefone de emergência da PM recebe 35 000 ligações a cada 24 horas, um volume quatro vezes maior que o do Corpo de Bombeiros, por exemplo. São computados aí tanto as chamadas de pessoas que precisam comunicar crimes quanto trotes ou pedidos de informação. No Centro de Operações da Polícia Militar (Copom), no Bom Retiro, trabalham mais de 400 homens e mulheres fardados, divididos em turnos. Nos horários de pico (fim de noite e madrugada), mais de 100 funcionários podem estar de plantão. Recrutados por ter paciência, boa dicção e agilidade para digitar, os policiais chegam a atender cerca de 300 ligações em oito horas de trabalho. Assim como os profissionais de telemarketing, eles têm metas a cumprir. Cada chamada deve durar, em média, três minutos. O ideal é que nunca ultrapasse cinco minutos. Assim que uma pessoa liga, seu telefone aparece em um Bina. Se for um aparelho residencial ou público, o endereço também surge na tela. O próximo passo é ouvir a queixa e avaliar sua gravidade. Em casos que envolvem risco de morte, o atendente passa as informações adiante antes mesmo de terminar a chamada.

Cerca de 23 000 policiais atuam no patrulhamento das ruas da cidade. Divididos em 25 batalhões espalhados pelas cinco regiões da capital, eles fazem o possível para chegar ao local das ocorrências classificadas como urgentes em até cinco minutos. Para isso, contam com 3 250 veículos. O principal desafio para quem trabalha no 190 é manter o sangue-frio mesmo quando a pessoa que está ao telefone lhe dirige os piores impropérios. Cada atendente recebe um salário de 830 a 2 800 reais por mês, de acordo com a patente. Para trabalhar ali, é necessário passar por testes e entrevistas. Nesse processo são eliminados os considerados de pavio curto. “De cada cinqüenta que tentam, apenas vinte costumam passar”, afirma a soldado Miralva de Souza Cruz, psicóloga do setor de recrutamento do Copom. Entre outras qualidades, o atendente tem de saber ouvir com atenção, colocar-se no lugar do outro e controlar situações de emergência sem agressividade. Quem opta por esse serviço tem perfil distinto daqueles que fazem policiamento ostensivo: em vez de empunhar armas e perseguir criminosos, sente-se mais à vontade em resolver conflitos na base da conversa. “É comum recebermos ligações de pessoas querendo se suicidar”, conta a soldado Isabel Amaral Pinheiro. “Nessas horas, tento ficar calma e continuo falando até demovê-las dessa idéia. Felizmente, nunca perdi ninguém no gancho.”

Também é preciso uma dose extra de paciência e diplomacia para explicar aos paulistanos que nem tudo o que ocorre de errado na cidade é caso de polícia. No último fim de semana, a reportagem de Veja São Paulo permaneceu 24 horas na central do 190 e acompanhou milhares de chamados. Além dos relatos de crimes, houve situações curiosas ( leia alguns diálogos ao longo desta reportagem ). Das 47 787 chamadas registradas entre sábado e domingo, apenas cerca de 9 000 envolviam denúncias de brigas, roubos ou agressões. A maioria delas teve de ser transferida para o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou para os bombeiros, como no caso da chamada de uma moradora de um edifício no centro, às 5h06 de domingo, informando sobre o incêndio no Teatro Cultura Artística.

Desde que o serviço 190 foi criado, em 1981, a população se habituou a encarar esse número como a salvação para todo e qualquer problema. De acordo com o coronel da reserva José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública, faltam campanhas que esclareçam sobre o procedimento correto diante de emergências. “No momento de um crime ou de um acidente, o cidadão está nervoso”, diz. “Ninguém vai pegar a agenda e olhar qual o telefone certo para discar. Todos ligam para o primeiro que lhes vem à cabeça, no caso, o 190.” Para José Vicente, a melhor alternativa seria reunir os serviços essenciais como polícia, bombeiros e Defesa Civil em um único número – assim como ocorre em Nova York, com o 911. “Não há a menor justificativa para existirem diferentes números de telefones para agências que deveriam atuar de forma conjunta.”

Especialista na área de computação voltada para a segurança pública, o professor universitário Vasco Furtado afirma que, além de economizar tempo, um sistema único poderia evitar que viaturas de diferentes corporações fossem deslocadas para a mesma ocorrência, como no caso do bebê Kayo Miguel, socorrido por uma equipe da polícia e uma dos bombeiros. Furtado ajudou a criar o Centro Integrado de Operações de Segurança (Ciops) de Fortaleza. Hoje, na capital cearense, quem liga para o 190 é atendido por uma central que reúne os serviços das polícias militar e civil, controle de tráfego, bombeiros e ambulâncias. “O atendimento conjunto permite ao poder público coordenar as ações”, comenta.

Continua após a publicidade

Segundo o major Alfredo Deak Jr., chefe do Copom paulistano, seria muito difícil reunir corporações mantidas por esferas públicas distintas, como a prefeitura e o governo do estado. “Teríamos de criar uma plataforma centralizada para diferentes tipos de serviço, como ocorre no Poupatempo”, explica. Além de prestar informações que não são atribuição da polícia, os atendentes do 190 gastam minutos preciosos despachando autores de trotes. Para coibir a prática, a PM costuma mandar soldados dar palestras em escolas. “Recebemos muitos telefonemas de pessoas dizendo obscenidades ou xingando os atendentes”, conta o subtenente João Adhemar Bincoletto. “A orientação é desligar o telefone na hora, para evitar que alguém que esteja realmente precisando de ajuda depare com o número ocupado.” Isso sem contar que cada viagem de viatura sem necessidade custa 200 reais aos cofres públicos. Todas as ligações para o 190 são gravadas. Ao receber a falsa comunicação de crime, a polícia pode ir até a casa do delinqüente e autuá-lo em flagrante. Os diálogos permanecem guardados por tempo indeterminado.

O Copom também tem olhos espalhados por parte da cidade. Em julho foi inaugurado o sistema de vigilância por câmeras. Dezoito policiais monitoram imagens resgatadas por 100 câmeras da PM e outras 44 da prefeitura. Isso permite não só enviar viaturas para combater um crime antes mesmo de alguém comunicá-lo, como verificar se um chamado dentro da área monitorada é verídico. É o Big Brother contra o trote.

O passo-a-passo de uma ocorrência

1 Todas as ligações são atendidas por um soldado ou cabo (os menos graduados na estrutura da PM). A duração média das conversas é de três minutos. Caso chegue a cinco minutos, o máximo estipulado, um superior – sargento, subtenente ou tenente – assume a chamada.

2 O atendente (como a soldado Mariana Silveira, foto) aciona o setor de controle e despacho, que é responsável por encaminhar as viaturas para atender a ocorrência. Casos urgentes, como roubo e agressão, devem ser atendidos em até cinco minutos, do início da ligação à chegada ao local. A PM procura destacar para o setor de controle e despacho policiais com mais experiência nas ruas. São eles que avaliam se há necessidade de retornar a ligação ao solicitante, assessoram o patrulheiro via telefone, chamam reforços de tropas especializadas…

Continua após a publicidade

3 Ainda durante a chamada, o supervisor classifica as ocorrências por grau de relevância. As que envolvem risco de morte recebem o rótulo “urgente”. Comunicados de roubo de carro são identificados como “alerta”. Desentendimentos entre marido e mulher ou entre vizinhos recebem a classificação “normal”. A equipe de despachos atende primeiro às ocorrências mais graves e deixa para o final da fila as corriqueiras.

4 Todos os casos são arquivados no Centro de Processamento de Dados, órgão de tecnologia de informação da PM. O áudio da ligação fica gravado e é guardado por tempo indeterminado.

Trote é crime

Polícia Militar recebe por dia cerca de 7 000 trotes (quase 300 por hora). Esse número corresponde a 21% das ligações. São chamadas inconvenientes como a do atual candidato a prefeito Paulo Maluf, que em junho de 1998 ligou dizendo que havia três homens suspeitos em frente ao seu escritório. Na verdade, o político só queria provar a ineficiência do serviço para uma jornalista. “A brincadeira pode custar uma vida, já que temos de deslocar patrulheiros que poderiam atender a um caso urgente”, afirma o tenente Thiago Maniglia, responsável pela seção técnica do Copom. No caso de Maluf, três viaturas foram designadas para o alarme falso.

Os maiores responsáveis pelos trotes são as crianças e os adolescentes. Durante os intervalos e as saídas escolares, a incidência de ligações desse tipo aumenta 10%. “Em época de provas existem estudantes que ligam dizendo que há uma bomba dentro do colégio”, conta Maniglia. “Temos de evacuar o local, e os testes são adiados.” Cada viagem de viatura sem necessidade custa 200 reais aos cofres públicos. Um dos recordistas de trotes foi apelidado de Popoiú. Desde janeiro deste ano, ele ligou, de celulares ou telefones públicos, mais de 1 800 vezes e chegou a realizar 130 chamadas em um só dia. Em todas as situações, coloca uma música de fundo enquanto repete “Popoiúúúúúúú”. Há também indivíduos que telefonam para dar cantadas em atendentes mulheres, outros que inventam crimes… Categorizado no Código Penal como falsa comunicação de crime, o trote pode resultar em até seis meses de prisão. “Nossa ordem é rastrear as chamadas e encaminhar o criminoso para a delegacia”, afirma Maniglia.

Continua após a publicidade

Chamadas que viraram notícia

Parecia ser mais um trote. Na madrugada do dia 10 de novembro de 2005, um atendente ouviu o relato de uma briga envolvendo o boxeador Mike Tyson dentro da boate Bahamas, casa em Moema (atualmente fechada) freqüentada por garotas de programa. Ao desligar, o operador percebeu que a suposta piada poderia ser verdade. Surgiram outras queixas da tal briga. O atleta havia agredido um cinegrafista e acabou detido pela polícia quando já estava em outra casa noturna, a Love Story, no centro.

Em uma tragédia de grandes proporções, ligações coincidentes se multiplicam pelos terminais de atendimento do 190. Eram quase 19h do dia 17 de julho de 2007 quando surgiram dezenas de chamadas simultâneas relatando os estragos causados pela explosão de um avião da TAM durante o procedimento de pouso no Aeroporto de Congonhas. O acidente resultou em 199 mortos.

“Pelo amor de Deus, filha, Rua Santa Leocádia, 138. Tem ladrão no prédio. Jogaram uma criança lá de cima. Pelo amor de Deus.” Em tom de desespero, o pedido de socorro – registrado às 23h49 do último dia 29 de março – partiu de um morador do edifício onde vivia o casal Alexandre Nardoni e Anna Jatobá. Assim ficaram registrados no Copom os momentos seguintes à morte da menina Isabella.

190 – MODO DE USAR

Continua após a publicidade

Acione a PM se…

Presenciar uma briga.

Os policiais podem impedir que um simples desentendimento termine em homicídio

Seu carro tiver sido roubado.

A PM lança um alerta pelo rádio. Se o veículo for visto na rua, será apreendido

Continua após a publicidade

Tiver presenciado ou sido vítima de assalto.

Houver alguém tentando invadir a sua casa ou a de seu vizinho.

Suspeitar estar sendo vítima de golpe financeiro.

A PM costuma conhecer as últimas modalidades aplicadas na praça e poderá evitar que você caia na armadilha

Presenciar um acidente de carro com vítima.

Uma viatura da polícia deve ir ao local para isolar os veículos envolvidos até a chegada do resgate

Encontrar um cadáver.

A PM deve ir ao local. Se a causa da morte for suspeita, ela acionará a perícia

E para onde ligar se…

Quiser fazer uma denúncia anônima.

Disque-denúncia, 181

Presenciar um incêndio.

Corpo de Bombeiros, 193

Precisar de uma ambulância.

Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), 192

Faltar luz no bairro.

Eletropaulo, 0800-7272120

Houver um vazamento de água na sua rua.

Sabesp, 195

Tiver sido mordido por um cachorro.

Centro de Controle de Zoonoses, 2224-5500

Estiver se sentindo sozinho e precisar de alguém para conversar.

Centro de Valorização da Vida (CVV), 141 ou 2577-4111

Quiser saber um número de telefone.

Auxílio à lista, da Telefônica, 102

Tiver sido vítima de inundação, desabamento ou desastre natural.

Defesa Civil, 199

Publicidade