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OLÁ,

Como nasce uma bolsa Hermès

Uma visita aos ateliês da grife, na França, onde são fabricados os acessórios mais cobiçados (e caros) do mundo

Por Kênya Zanatta
Atualizado em 5 dez 2016, 18h09 - Publicado em 21 abr 2011, 22h35

Um prédio que, à primeira vista, impressiona por não impressionar. Os menos atentos talvez nem percebam tratar-se do lugar onde são criadas as bolsas mais caras e cobiçadas do mundo. O edifício só está identificado por discretos letreiros e bandeirolas com o nome Hermès.

Estamos em Pantin, a meia hora de trem do centro de Paris no imóvel que abriga os ateliês de couro da grife. Criada em 1837 como fabricante de equipamentos de equitação, transformou-se, no século seguinte, em um dos ícones do luxo.

Pantin é uma cidadezinha quase anônima, na periferia da capital francesa. Não há dispositivos ostensivos de vigilância e dá para contar nos dedos da mão os poucos seguranças a postos no saguão, semelhante ao de qualquer edifício de escritórios. Um detalhe curioso, considerando-se que dali saem peças cujo preço mais baixo tem quatro dígitos — na loja de São Paulo, inaugurada em setembro último, foram vendidos três modelos Birkin de pele de crocodilo que custavam, cada um, 120.000 reais.

No átrio central percebem-se, atrás de janelas envidraçadas, as silhuetas dos artesãos em atividade. São 370 ao todo. No passado, havia mais homens que mulheres, tendência que se inverteu na produção de bolsas e pequenos objetos. O contrário acontece na fabricação de malas, que demanda maior força física.

A empresa tem mais nove centros de produção espalhados pela França, onde dão expediente outros 1.430 especialistas em fabricar os produtos vendidos nas 294 lojas exclusivas e nos 37 pontos de venda espalhados por quatro continentes (só não chegou ainda à África).

Antigamente, os ateliês ficavam no mesmo imóvel da loja Hermès, instalada desde 1880 no sofisticadíssimo Faubourg Saint-Honoré, vizinha de nomes do luxo como Givenchy, Chanel e Cartier.

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Em 1992, grande parte foi transferida para Pantin, que também abriga, em outros edifícios, o depósito de matéria-prima e salas de corte de couro. Os funcionários orgulham-se em declarar que fazem parte de uma empresa familiar. Isso vale tanto quando se analisa a história da Hermès, até hoje comandada pelos descendentes de seu fundador, Thierry Hermès — eles detêm 73% das ações —, quanto para as pessoas com as quais se cruza nos corredores entre as mesas dos ateliês.

Não é raro encontrar pais e filhos, casais ou irmãos. Vestem roupas casuais, alguns de avental, que pouco remete ao que se imagina de uma marca de luxo. A palavra, aliás, provoca reações adversas em operários e executivos, que preferem substituí- la por “tradicional” ou “artesanal”.

O clima parece amigável, mas as pessoas não se falam muito. Predomina o silêncio, interrompido apenas pelo som das ferramentas de trabalho. A reportagem de VEJA SÃO PAULO, seguida de perto por uma assessora de imprensa, não pode abordá-los. Apenas os chefes de cada seção, chamados de contramestres, têm autorização para dar entrevistas.

Um deles, Gérard Blanc, passou quarenta de seus 57 anos de vida na empresa. “Só quem tem ‘a mão’ pode trabalhar aqui”, diz. Ah, sim. É comum, entre eles, usar a expressão “a mão” como se fosse uma entidade, para referir-se a talento, habilidade. O famoso “jeito para a coisa”, em bom português.

Dá para entender o motivo ao longo da visita: os objetos ali criados são quase 100% manufaturados. A máquina de costura entra em ação em pouquíssimas etapas. Quem chega com a expectativa de ver produtos desfilando sobre esteiras rolantes pode se desapontar com a simplicidade. Tudo é fabricado sem pressa, no tempo exigido para garantir que cada detalhe receba a atenção necessária.

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Da matéria-prima bruta aos retoques finais, uma bolsa demora de quinze a vinte horas para ficar pronta — ritmo que explica a lista de espera de até três anos, caso da Birkin de crocodilo.

+ Confira o passo a passo do processo de fabricação 100% manual das bolsas

Como alguém aceita encarar tamanha demora por algo que custa tanto dinheiro? Sobretudo, por status, a exemplo de quase tudo o que move o segmento de luxo. Semana sim, outra também, revistas e programas de televisão exibem famosas — das classudas às que mal conseguem pronunciar o nome da marca — com artigos Hermès a tiracolo.

A mais memorável de todas foi a atriz americana Grace Kelly, a princesa de Mônaco. Em 1956, para evitar que paparazzi clicassem sua barriguinha de grávida, cobriu-a com um modelo da grife. Publicada mundo afora, a imagem eternizou a peça, que acabou rebatizada com o sobrenome da estrela de cinema.

Existem pelo menos quinze modelos de bolsa muito famosos, mas a grife afirma nunca ter contabilizado quantos já foram criados do início de sua história aos dias de hoje. Quando uma mulher bate perna na Rua Oscar Freire com uma bolsa usada por membros da realeza, é como se quisesse provar que pertence a essa estirpe de poderosas.

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Claro, nem o mais famoso dos mortais conseguiria tornar cobiçado um produto de baixa qualidade. Por isso mesmo é difícil não ficar de queixo caído com o rigor do controle de qualidade testemunhado durante a visita aos ateliês.

A peneira surpreende já na etapa inicial, a seleção da matéria-prima. Somente 4% do couro de cada fornecedor passa pelo crivo dos funcionários, treinados para perceber o mais sutil dos defeitos — se um crocodilo foi mordido por outro, por exemplo, sua pele é recusada.

São necessários até três desses répteis para fazer uma Kelly. Apenas a barriga, mais lisa, pode ser utilizada. Por se tratar do tipo mais caro de material, só pode ser manuseado por artesãos experientes, num ateliê exclusivo. As outras variedades de animais, como o avestruz da África do Sul e o lagarto da Ilha de Java, dividem espaço nas demais oficinas.

Ao chegarem à França, os pedaços de couro seguem para uma reserva, num outro prédio da empresa em Pantin. Por ano, passam por ali aproximadamente 600.000 peles, de uma dúzia de espécies, em mais de 400 nuances. Ficam guardadas em salas com temperatura e umidade controladas, para evitar ressecamento.  Toda a matéria-prima de origem animal é certificada segundo as regras da Convenção de Washington, que regulamenta o comércio de espécies ameaçadas de extinção.

“Nossos artigos não são criados para durar apenas uma temporada”, afirma Axel Dumas, 39 anos, integrante da sexta geração de descendentes de Thierry Hermès. Ele dirige o segmento de produtos de couro e selaria, que representam cerca de 50% de toda a produção.

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Um terceiro (e não menos importante) fator explica o sucesso da marca: o velho princípio da oferta e procura. A quantidade de interessados em comprar Birkins e afins cresce mais depressa que a velocidade de produção, o que aumenta a aura de exclusividade em torno da marca.

Não à toa, a empresa recusa-se a divulgar quantas bolsas produz por mês e a fornecer detalhes sobre listas de espera. Mais do que uma inteligente estratégia — apesar de, segundo Dumas, a grife não dispor de um departamento de marketing —, manter a produção a conta-gotas se deve ao longo tempo necessário para formar artesãos. Somente depois de uma década de experiência um desses profissionais chega à maturidade, por assim dizer, pois acumula um bom repertório de itens e suas devidas variações.

A jornada começa, em geral, nos últimos anos do equivalente francês ao ensino médio. Recrutados em escolas técnicas de couro ou sem nenhuma experiência no ramo (mas dotados de grande habilidade manual), os aspirantes ingressam num treinamento para aprender o bê-á-bá da fabricação à la Hermès.

Após quinze meses, continuarão o aprendizado apenas se provarem ser capazes de montar uma Birkin e uma Kelly sem ler o manual de instruções. Os aprovados seguem para ateliês, onde se dá a etapa seguinte, que dura em média dois anos. Nessa fase, confeccionam artigos sob orientação de um profissional mais experiente, que vira seu padrinho. “Os artesãos em formação já fazem bolsas que vão para as lojas, mas não as concluem num prazo rentável para nós”, afirma Kerry Hollinger, uma das responsáveis pelas coleções de peças de couro, que tem 26 anos de casa.

O preço de uma peça da grife, exceto pelos impostos de cada país, é calculado com base em três elementos: o tamanho, a matéria-prima e o número de horas que o artesão precisará dedicar à confecção. Uma Kelly de crocodilo tamanho 28 custa 14.900 euros (cerca de 38.000 reais, mas não há nenhuma à venda no Brasil no momento). E um terço disso se for de couro de bezerro Box.

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O modelo Birkin, criado para a cantora inglesa Jane Birkin na década de 80, custa 5.200 euros (13.300 reais) em taurillon, couro de jovem bovino macho, e o dobro em pele de avestruz.

Quatro etapas são comuns à fabricação de todas as bolsas Hermès. Conforme as peculiaridades de cada material, os estágios se multiplicam. O primeiro profissional a entrar em ação corta os pedaços de couro que serão usados na confecção do produto — há gente treinada exclusivamente para essa função.

Daí em diante, todo o resto será conduzido por um mesmo artesão. Para uma Kelly, por exemplo, são quarenta “ingredientes”. Um dos diferenciais da grife ao confeccionar suas peças é o ponto “à moda das selas”, usado por ser bastante resistente. Com uma ferramenta chamada sovela, o artesão faz os furos da costura um a um.

Em seguida, cruza duas agulhas da direita para a esquerda, e vice-versa. Se um dos pontos arrebentar com o tempo, todo o resto continuará no lugar. A essa altura falta somente aplicar as partes metálicas, de latão com acabamento prateado, douradas ou, frequentemente, folheadas a ouro. A peça, uma placa ou fecho, por exemplo, é colada.

Depois, o artesão introduz pequenos pregos nas extremidades e corta a haste que desponta do outro lado do material. Com um martelo, bate até formar outra cabeça de prego, evitando que a peça se desprenda, o que poderia acontecer se fosse apenas colada ou aparafusada. Será ainda preciso polir com um instrumento chamado perloir para que todas as pontinhas metálicas fiquem igualmente lisas e brilhantes. É um trabalho de precisão, pois basta um movimento em falso para arranhar a parte metálica, o que obrigaria o artesão a recomeçar todo o trabalho.

A última etapa é o acabamento das bordas, que são lixadas e tingidas. Tal e qual uma obra de arte, o produto é assinado por ele ao final. É um registro, quase sempre imperceptível a olhos não treinados, que tem razões práticas. “Se há um problema, conseguimos identificar a pessoa responsável pelo produto”, explica a contramestra Hollinger. Qualquer eventual reparo será confiado ao funcionário que o fabricou. Antes de seguir para as lojas, a peça precisa ser aprovada por um especialista. Caso apresente defeitos corrigíveis, volta para o ateliê. Se for impossível reparar a falha, será destruída.

A Hermès apresenta suas coleções duas vezes por ano. Os diretores das lojas examinam os produtos e fazem as encomendas para a temporada seguinte. A partir daí, elabora-se o planejamento da produção e das compras de material. Novos produtos são concebidos pelo departamento de criação ou em colaboração com designers externos.

Uma vez validado por um comitê interno e pelo diretor artístico, Pierre-Alexis Dumas, um novo modelo de bolsa é enviado ao escritório de métodos, que cria um minucioso manual de instruções para orientar sua fabricação. É então que alguns artesãos selecionados vão pôr a mão na massa para fazer com que a bolsa chegue às lojas de todo o mundo.

Se todas as variações de tamanho, cor, matéria-prima e detalhes oferecidas pela marca — só a Kelly pode vir em 200 combinações — não forem suficientes para satisfazer as clientes mais exigentes, a Hermès mantém ainda um ateliê de encomendas especiais para atender a qualquer capricho.

Nenhuma ideia é considerada excêntrica demais. Em 1957, o cantor americano Sammy Davis Jr. encomendou uma mala de couro de crocodilo que escondia um bar cheio de detalhes em seu interior. Um italiano aficionado por maçãs pediu uma com o formato da fruta. Desde que o cliente tenha paciência para esperar e uma conta bancária com limite generoso, tudo parece possível em Pantin.

 

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