Leia capítulo inédito da biografia de Casagrande
Trecho traz as memórias do ex-jogador sobre sua permanência em clínica de reabilitação
Capítulo Cinco – Memórias do exílio, do livro Casagrande e Seus Demônios (Globo Livros; 248 páginas):
Despertou sem noção de nada. Olhou para o teto, para as paredes do quarto, para as coisas ao seu redor, não reconheceu o ambiente. “Onde estou?”, perguntava-se. Ainda sob efeito da medicação que havia tomado, e que só agora começava a se dissipar, sentia certa confusão mental. Aos poucos, procurou organizar os pensamentos e reconstituir os últimos acontecimentos de que se lembrava para tentar entender o que fazia ali. Tinha vaga ideia de que sofrera um acidente, fora levado ao Hospital das Clínicas e pedira transferência para o Albert Einstein. Porém, decididamente, não estava lá — um local que conhecia tão bem. Esperava ver alguém da família a seu lado, mas se encontrava sozinho.
“Acordei num lugar estranho, não sabia se era São Paulo, se estava no Brasil, qual a direção em que ficava, eu não sabia nada”, recorda-se. Os terapeutas da clínica lhe davam poucas explicações nesse primeiro momento, e ele só conseguiu entender melhor o que se passara bem mais tarde. “Eu estava muito frágil, então não tinha nem forças para me revoltar. Só depois de algum tempo, quando comecei a melhorar fisicamente e a recuperar a sanidade, passei a entrar em conflito, porque achava que não tinha de ficar lá.”
Após dois, três meses, tornara-se extremamente impaciente. Em sua avaliação, já que permanecera todo aquele tempo sem usar droga, estava “limpo” e pronto para regressar à vida normal. Não compreendia que o seu grau de dependência exigia tratamento prolongado. Manifestava preocupação com seu trabalho, alegava que iria perder o emprego, precisava cuidar da família, dos filhos. “Isso martelava na minha cabeça, e eu insistia nesses pontos com os médicos. Mas se eu não havia pensado em tudo isso antes, por que iria ficar preocupado a essa altura, internado na clínica? Era um pretexto para sair de lá.”
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A resistência ao tratamento durou quatro meses. Um tempo interminável, no qual se sentia preso e se desesperava por não poder se encontrar ou falar com nenhum integrante da família. Completamente isolado do mundo externo, não tinha meios sequer de pedir ao filho mais velho, Victor Hugo, e à sua mãe para tirá-lo da clínica. Um dos motivos da privação de contato é justamente esse. Se pudesse conversar com eles, as chances seriam grandes de convencê-los de que já superara o problema. Lançaria mão de todos os argumentos e artifícios: chantagens emocionais, mecanismos para despertar o sentimento de culpa dos parentes, promessas enfáticas de que nunca mais voltaria a usar drogas, o alto custo mensal da internação, enfim, tudo isso, aliado ao seu inegável poder de sedução, faria qualquer pessoa querida fraquejar.
Em dado momento, resolveu jogar pesado. “Parei de pagar a mensalidade na tentativa de ser mandado embora.” Recusando-se a assinar o cheque, completou dois meses de inadimplência. E foi assim que um dos psicólogos que cuidavam dele o chamou para uma reunião: “Você vai sair daqui, continuar naquele ciclo vicioso e, em breve, regressar para cá? Ou vai se tratar até receber alta e ter uma vida normal lá fora?”, perguntou. O ultimato deu resultado. Ele resolveu acertar as contas e prosseguir com a internação. Além de ouvir os argumentos do terapeuta, tinha consciência de que sua família não permitiria passivamente aquela ruptura unilateral.
Cansado de dar murros em ponta de faca, Casagrande por fim capitulou. Percebeu que a única maneira de sair de lá seria aceitar o tratamento. Mas não mudou de postura meramente como uma estratégia em busca da liberdade. Além da conclusão lógica de que sua resistência só iria estender o período de internação, convenceu-se da necessidade de isolamento e da terapia em período integral, longe das armadilhas da vida cotidiana.
“Foram as duas coisas. De fato, eu entrei no tratamento, fiz tudo direitinho, comecei a acreditar nos psicólogos e naquilo que eles falavam para mim. Se eu tivesse feito um jogo apenas para sair da clínica, me fingindo de bonzinho para ter alta, hoje estaria com o mesmo comportamento de antes. Percebi, ali, uma oportunidade para me transformar como ser humano”, explica.
A partir desse momento, permaneceria mais oito meses internado, totalizando um ano na clínica, com rotina extremamente rígida. As suas obrigações diárias deviam ser cumpridas à risca, sob pena de sofrer punições e descer alguns degraus na, digamos, escala evolutiva — o que só carretaria privações adicionais e deixaria a meta mais distante. A programação de deveres seguia padrão quase militar, tamanho o rigor da disciplina imposta aos internos.
Assim, acordava todos os dias, impreterivelmente, às sete horas. Quinze minutos depois, já tinha de regar a horta, uma das funções atribuídas a ele no início do tratamento, juntamente com outro paciente. Em seguida, das 7h45 às 8h25, praticava educação física. O café da manhã era servido pontualmente às 8h30. Nessa primeira fase, cabia a ele a tarefa de tirar a mesa do café. Às 9 horas, formava um grupo de cinco internos e voltava para a horta a fim de limpar os canteiros. “Para mim, era um saco”, confessa. “Mas fazia parte do processo de tratamento para desenvolver a humildade. O dependente químico se torna um tanto prepotente, porque a droga o leva a não cumprir obrigações.”
Durante meses, precisou se dedicar a esses serviços. Também arrumava a sala de reuniões de grupo, à tarde. Tirava todas as cadeiras, passava pano no chão, organizava as prateleiras de livros, assim como os jogos e materiais de terapia. Tudo isso tinha de ser realizado em quinze minutos. Se não concluísse dentro do tempo estipulado, perdia pontos, necessários para obter recompensas.
O sistema de pontuação semanal vai de zero a dez. Quem não atinge seis, por exemplo, fica sem refrigerante no fim de semana, quando os internos têm direito a duas latinhas. Para receber visita, regalia restrita àqueles que estão em fase avançada do tratamento, é necessário somar pelo menos sete pontos. Cada passo do paciente é avaliado e levado em consideração. Existem regras em todas as atividades: no fumódromo, não é permitido se comunicar com os colegas, nem por gestos. Qualquer desvio provoca perda de pontos.
De acordo com a gravidade do erro, há punições mais severas, como o confinamento no quarto. Casagrande experimentou tal castigo, durante 24 horas, por ter tentado passar o número do telefone de sua mãe ao irmão de um paciente. “Queria que ele ligasse para ela e pedisse para me tirar de lá, dissesse que eu estava desesperado para sair.” Conforme o caso, o isolamento pode durar mais, meses até.
Essa linha de tratamento é bastante contestada por psiquiatras e psicólogos adeptos de outras correntes terapêuticas. Mas, embora tenha discordado de algumas punições desse tipo, ao longo de sua permanência na clínica, Casagrande acabou por entender a necessidade de ações mais duras em determinadas situações. “Há pessoas que não têm condições de conviver com outras durante um período de crise. O método da clínica inclui atividades em conjunto; então não pode ter ninguém remando contra a corrente.”
Os casos de dependentes que ficam confinados por longos períodos causam mais contestação. A impressão é de que se trata mais de uma prisão do que uma clínica destinada à sua recuperação. “É cruel, tem gente que fica seis, sete meses isolada do convívio com os demais. Mas, ao mesmo tempo, vejo que a clínica precisa tomar alguma atitude para a pessoa cair na realidade. Quem apresenta um quadro de agressividade fica separado até se enquadrar.”
Esse não era o caso de Casão. Ele nunca apresentou comportamento agressivo ou reagiu com violência, nem quando estava sob efeito de drogas, muito menos durante a internação. Aliás, cabe aqui uma correção. Casagrande — o comentarista popular e ex-jogador de futebol — jamais foi paciente da clínica. Quem estava lá era o Walter. Todos os internos e funcionários só o chamavam assim, pelo primeiro nome. Uma forma de humanizar o personagem e tirar aaura criada pela fama.
“O fato de ter começado a manter contato com o Walter me mostrou o quanto ele estava doente, tinha problemas emocionais e se escondia atrás do Casagrande. Hoje, eu sou o Walter a maior parte do tempo, e de uma forma legal. Um cara que cuida das pessoas queridas e dele próprio, com consciência da doença e do tamanho do problema que pode causar a si mesmo”, assegura.
Passaram-se sete, quase oito meses, para que Walter ganhasse sinal verde para receber visitas. Durante esse período, ele passava por tratamento e os familiares também. Precisaram ser preparados para lidar com aquela situação complexa. Dona Zilda sofria profundamente. Afinal, ela e Victor Hugo haviam dado o aval para a internação involuntária do filho.
“A minha maior angústia era não ter ideia de como ele iria reagir quando se encontrasse na clínica e soubesse que eu havia assinado documento para a internação”, afirma dona Zilda. “Ficamos sete meses sem poder falar com ele. Nós só o observávamos por um vidro, pela janela de uma sala, mas ele não nos via, nem sabia que estávamos lá. Era uma aflição.”
Todos precisaram de muita paciência. Além da distância da família, Walter sofria com a privação de contato feminino. “Fiquei um ano sem sexo e, pior, sem carinho ou qualquer tipo de amor. Não se pode nem encostar em uma mulher.” A clínica comportava 32 pacientes, homens em sua maioria. “Havia poucas mulheres lá dentro e, ainda assim, eu as olhava só como outras pessoas doentes, como eu.”
Não havia espaço, ali, sequer para amizades. Os internos são monitorados o tempo todo, para evitar a formação de grupos ou panelinhas. Por isso foi um alívio quando as visitas começaram a ser permitidas. Ainda que os encontros fossem breves, sempre com a mediação de um terapeuta, já eram uma referência afetiva, e traziam com eles um pouco de sua história. “Foi muito emocionante meu primeiro contato com o Victor, o Leonardo e o Symon. Eu já havia entendido que meus filhos tinham feito o que era melhor para mim. A minha relação com eles, hoje, é ótima.”
Mesmo na condição de ex-mulher, Mônica também participou do processo terapêutico. “Ela demonstrou preocupação, interesse, carinho e afeto por mim”, reconhece Casagrande. Os dois mantêm uma relação relativamente amigável, com uma ou outra discordância, como é comum em separações conjugais.
Eu mesmo tive a oportunidade de encontrá-lo na clínica, em sua primeira visita depois das dos familiares. Ele havia engordado vinte quilos e voltara a se parecer com a imagem consagrada do personagem Casagrande. Sempre sob a supervisão de um terapeuta, fiz uma longa entrevista com ele, publicada no Diário de S. Paulo em 27 de julho de 2008. Naquela ocasião, também conversamos, pela primeira vez, sobre a proposta da Globo Livros de contarmos a sua história. Ele ficou animado com o projeto e pediu ao psicólogo que o acompanhava para buscar um livro no quarto. Quando voltou, me presenteou com a autobiografia de Eric Clapton. Estava empolgado com o que lera sobre o ídolo do rock e do blues, a quem sempre admirou.
Havia ganhado o volume de quatrocentas páginas na festa de amigo secreto, no fim do ano anterior. Ele próprio escolhera aquele presente, escrevendo seu desejo num papelzinho, colocado junto com os outros pedidos dos demais participantes. O paciente que o tirou como amigo precisou primeiro submeter a sugestão ao corpo clínico. Depois da aprovação, pediu a um familiar para comprar o livro — era assim que funcionava a troca de presentes no Natal.
Casagrande se inspirava na biografia de Eric Clapton por se tratar de um dos monstros sagrados do rock que haviam sobrevivido ao uso pesado de drogas. A maioria de seus ídolos morrera jovem, de overdose: Jim Morrison, Janis Joplin, Jimi Hendrix… Durante muito tempo, cultivara certa atração por aquele fim fatal, como se fosse seu destino cumprir a sina de viver intensamente e morrer até os trinta anos — uma ideia juvenil lançada nos anos 1960 por Mick Jagger, que, ironicamente, envelheceu nos palcos sem perder a energia. A trajetória revelada por Clapton, que superara a dependência de heroína, cocaína e álcool, abria agora uma nova janela. Muito mais ensolarada.
Diante de seu entusiasmo com a oportunidade de também revelar ao mundo sua saga, combinamos que faríamos juntos o projeto do livro tão logo ele saísse da internação. Mas seria preciso controlar a ansiedade. Walter só receberia alta em outubro daquele ano. Além disso, descobriria, ao ser posto na rua, que existia muita coisa a reparar em sua vida, antes de mais nada.
A tv Globo havia mantido seu contrato em vigor durante o longo período de afastamento, pago normalmente seu salário e lhe dado todo o apoio para o tratamento. No momento em que Walter voltasse a ser Casagrande, teria a obrigação moral de honrar a confiança depositada nele e seguir o roteiro estabelecido pela emissora para o retorno gradativo às transmissões. Também precisaria filtrar, pelo menos por algum tempo, o círculo de amizades — para minimizar o risco de sofrer recaída. E o mais importante de tudo: precisava se reaproximar dos filhos e saldar a dívida afetiva contraída com a família.