Tarsila do Amaral (1886-1973) passou a década de 1920 entre Paris e a fazenda de sua família, no interior paulista. Um século depois, o Museu de Luxemburgo, na capital francesa, prepara para outubro uma grande mostra retrospectiva de sua obra. Uma prévia já pode ser conferida: a tela A Cuca, pintada pela artista em 1924, integra a exposição Le Paris de la Modernité (A Paris da Modernidade), em cartaz no Museu de Belas Artes da cidade, abrigado no Petit Palais, até 14 de abril.
Juliette Singer, curadora-chefe do Petit Palais, conta ter batalhado para incluir a brasileira na exposição, que resgata as escolas modernistas da Paris de 1905 a 1925 e já recebeu mais de 230 000 visitantes: “Conheci sua obra na Pinacoteca de São Paulo em 2008 e foi uma revelação”, relata. A escolha foi acertada: as cores tropicais de Tarsila trazem frescor em meio a quadros de ícones das vanguardas artísticas da Europa, como Pablo Picasso e Amedeo Modigliani.
Fã declarada da pintora, Juliette adora a cena artística paulistana atual. “Como a Paris do início do século XX, hoje talvez seja São Paulo o lugar onde a arte é mais ativa no mundo. É uma cidade estimulante, com ótimos museus e artistas incríveis”, afirma. Para a curadora, as temporadas parisienses de Tarsila a conectaram ainda mais com suas raízes: “Quanto mais longe ela estava de casa, mais seu coração se aproximava da cultura popular brasileira”, observa. A reinterpretação do personagem folclórico em A Cuca ilustra esse vínculo. “A tela é quase naïf, primitiva, mas ao mesmo tempo inquietante e completamente revolucionária. A arte de Tarsila é perturbadora, sem ser agressiva”, define Juliette.
A exposição resgata um tempo em que, mais do que nunca, a Cidade Luz foi um polo exportador de cultura para o mundo. Mas Juliette Singer reconhece que a influência entre Europa e América Latina se deu em via de mão dupla. “A cultura brasileira teve impacto na obra de grandes artistas, como o poeta suíço Blaise Cendrars, radicado na França e amigo de Tarsila.”
Além da pintora, outros símbolos da cultura brasileira integram a mostra Le Paris de la Modernité. Santos Dumont é lembrado como o primeiro homem a rasgar o céu da cidade com o seu 14-bis em 1906. A MPB é citada como inspiração para o nome do cabaré mais concorrido na Paris dos “années folles” (ou anos loucos), o Le Bœuf sur le Toit (O Boi no Telhado). E o percurso termina com uma miniatura do Cristo Redentor, identificado como a maior escultura art déco do mundo. “Grandes personalidades brasileiras vieram à França no período e, ao regressar, se apropriaram dessa efervescência e criaram, no continente americano, outras formas de modernidade”, conclui Juliette Singer.
Publicado em VEJA São Paulo de 29 de março de 2024, edição nº 2886