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“A solidão é um abrigo”, diz Tamara Klink após viagem de oito meses no Ártico

Presa de barco no mar congelado, velejadora revela as lições e desafios da última expedição

Por Humberto Abdo
Atualizado em 26 jul 2024, 09h46 - Publicado em 25 jul 2024, 16h02
Mulher branca posa sentada no gelo de roupa amarela com barco ao fundo
Tamara Klink (Arquivo Pessoal/Divulgação)
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Uma experiência de quase morte testou os limites físicos e psicológicos de Tamara Klink, 27. Ancorada com o barco Sardinha 2 na Groenlândia, após uma difícil travessia de 25 dias entre icebergs, a velejadora profissional se safou por pouco ao cair na água congelante. Assim que se recompôs, fez contato com o pai, também velejador, Amyr Klink, gritando: “Estou viva!”.

Autora de Nós: o Atlântico em Solitário (Companhia das Letras), um relato sobre a expedição pelo Oceano Atlântico feita em plena pandemia, Tamara já tem vários diários de viagem reservados para preencher um novo livro — e acumula vontade suficiente para dar início à próxima aventura enquanto descansa na cidade de Ilulissat, na costa ocidental da ilha, de onde falou à Vejinha por telefone.

Como está sua rotina agora?

Estou voltando para o ritmo da cidade e do verão, preparando o barco e arrumando metais que amassaram. Meus pais e meu namorado vieram me visitar recentemente.

Qual será seu próximo destino?

Sei que até o fim do ano tenho que voltar a São Paulo para encontrar minha vó, senão ela vai me tirar da família (risos). Mas o próximo destino de barco é secreto! Eu não falo para onde vou antes de ter chegado. Não é superstição, é para me dar a liberdade de escolher sem me comprometer com a expectativa dos outros.

Você se vê vivendo em terra firme?

Não sei. Eu conheço e passei mais anos no tempo do relógio do que no tempo das estações. Me sinto confortável na cidade, mas não é o que mais gosto.

Uma de suas motivações para a última expedição era “descobrir o que acontece quando estamos sozinhos”. O que você aprendeu?

Uma das revelações foi ver quanto tempo gastamos na cidade para agradar ao outro. Como mulher, a gente se acostuma a usar muitas roupas que limitam os nossos movimentos. E a gente aceita isso como a única possibilidade. Lá eu percebi que grande parte da energia era usada para a sobrevivência e o prazer apenas. E isso foi muito libertador.

E quais eram os prazeres?

Acampar no gelo, encontrar animais… Olhar para o céu (risos). Tocar violão, que estou aprendendo, ler e escrever. Knulp (de Hermann Hesse) é o livro que mais gosto e leio todo ano. Também li Grande Sertão: Veredas (de João Guimarães Rosa) e Odisseia, de Homero, livros que eu não teria ousado ler se estivesse em São Paulo, onde normalmente contamos os minutos e só nos permitimos ler em intervalos.

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Ilustração abstrata com pessoa em barco
Ilustração de Maria Klabin para diário de Tamara Klink no Ártico (Maria Klabin/Reprodução)

Essa viagem vai virar livro?

Com certeza. Escrevi três diários. Um deles foi publicado aos poucos no Instagram com obras da artista plástica Maria Klabin (como a ilustração acima), que lia e reagia com uma pintura. E eu não tinha retorno, só mandava por e-mail via satélite, minha única forma de contato. Tem outro que escrevo no papel para mim mesma e o terceiro é um diário de sonhos, que anotava todo dia. Eram sonhos bem práticos, com animais que eu já tinha visto ou só vi depois. E sonhos envolvendo problemas no barco, gelo derretendo, avalanches…

Além da queda na água, quais foram os momentos mais desafiadores?

A navegação foi tão difícil que a invernagem começou a parecer a solução. Foi a primeira vez que naveguei em solitário no meio de icebergs. Dormia sempre períodos curtos, de vinte minutos. Em algumas áreas não dava para dormir nem esses vinte minutos. Se tivesse um iceberg pequeno que não aparecesse no radar, poderia danificar o barco. E a cartografia era muito precária e desatualizada. Quando foi feita, ainda existia uma grande geleira, que já tinha derretido quando eu passei.

“Muitos me disseram que meus braços eram fracos, que eu não saberia me defender sozinha, que ia faltar um homem comigo”

Você fez terapia antes de embarcar?

Sim, foi importante para me preparar emocionalmente. Muitas vezes minha própria família me desencorajava ou dizia para adiar. A terapia foi fundamental para eu saber separar os medos dos outros dos meus próprios. E os perigos reais dos imaginários. O dia em que caí no mar foi um dos muitos episódios que validaram essa preparação mental, porque não entrei em pânico, tomei decisões e fui estratégica em poucos segundos. Apesar das privações, me diverti muito. Sempre vi o que estava vivendo como um presente a mim mesma.

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Em entrevista à Vejinha, seu pai foi enfático ao dizer que prometeu “zero centavo e zero conselho”. Que efeito isso teve sobre você?

Hoje acho que foi positivo. Quando ele disse “não”, me deu liberdade de fazer meu próprio caminho sem pedir autorização. Nunca foram viagens de férias, mas projetos construídos com uma equipe. Hoje sou navegadora profissional, tenho contratos com empresas, e isso construí de forma independente. Mais do que conselhos ou objetos, fui privilegiada por crescer com o pai. Muitas pessoas no Brasil nem têm essa chance e muitas não têm direito de sonhar porque não têm o mínimo na urgência do dia a dia. Ele me deu condições para poder partir e um lugar para onde voltar, tudo dando certo ou errado.

Onde você considera sua casa?

Onde o barco está. E depois a casa da minha avó, em São Paulo. Meu lugar favorito no mundo é onde estão meus amigos.

O que mudou em você depois dessa jornada?

Sinto que sou mais racional do que antes. E que me tornei tão íntima da minha solidão que ela é uma companhia que posso ter onde quiser. É um refúgio, onde quer que eu esteja. E não é um problema, pena ou punição. A solidão é um abrigo, uma amiga! (risos)

Outra coisa que mudou foi minha visão da natureza. Eu cresci em São Paulo e me acostumei, quando criança, a ver a natureza como algo distante. E hoje é impossível separar humano de natureza.

Também me sinto mais autoconfiante. Muita gente me disse que meus braços eram fracos, que ia faltar um homem comigo, que eu não saberia me defender sozinha, que o inverno era duro demais, que era nova demais, que não tinha experiência, que ia me faltar razão, que eu ia sofrer de solidão. Várias dessas coisas eram associadas ao meu gênero. E hoje eu vejo que muitas das crenças limitantes que temos como mulheres são mentiras. Agora eu sei o que é ser humana antes de ser mulher.

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Publicado em VEJA São Paulo de 26 de julho de 2024, edição nº 2903

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