Sem a menor intenção de parar de fotografar, Sebastião Salgado, 80, presenteia São Paulo com mais uma exposição, a inédita 50 Anos da Revolução dos Cravos em Portugal, em cartaz no Museu da Imagem e do Som (MIS), dentro da mostra Maio Fotografia no MIS.
Consagrado no mundo todo por registrar conflitos humanos e a nossa relação com a natureza, o fotógrafo exibe, pela primeira vez no Brasil, sua série sobre o evento mais importante da história política portuguesa, deflagrado em 1974, em Lisboa, e que pôs fim ao regime ditatorial de António Salazar.
Salgado fotografava profissionalmente havia cerca de um ano quando embarcou em um pequeno carro na França com destino à capital portuguesa para cobrir o movimento. Com ele, estavam a mulher, Lélia Wanick Salgado, e o primeiro filho do casal, Juliano, ainda bebê.
“A história que vocês vão ver na exposição é a nossa história”, diz. A parceria com Lélia dá corpo às suas mostras — é ela quem faz a curadoria e, muitas vezes, a cenografia, a exemplo desta. A extensão do material desses mais de cinquenta anos de carreira é imensa, e, segundo ele, parece ter chegado a hora de se debruçar sobre a catalogação do acervo, mas sem deixar de fotografar, claro. Confira a seguir a entrevista concedida à Vejinha.
Com mais de cinquenta anos de carreira, ainda há desejos a realizar na fotografia?
Claro! Olha, houve uma bobagem, porque eu dei uma entrevista para o The Guardian (jornal britânico, em fevereiro deste ano) e um jornalista brasileiro disse que eu tinha me aposentado. Não me aposentei, não. Continuo fotografando e até fiz uma reportagem maravilhosa no final do ano passado utilizando, pela primeira vez, um drone. Descobri uma maneira nova de fotografar.
O fotógrafo é alguém que não se aposenta, ele vai até o fim fotografando. Estou com 80 anos. Mais dez, no máximo, estou desaparecendo, porque a gente morre entre os 80 e os 90. Então, agora estou trabalhando nos meus arquivos, porque, se eu não o fizer, outras pessoas o farão por mim. Acho que é a hora de começar a mostrá-los.
O que a fotografia representa para você hoje?
É muito interessante que hoje todo mundo imagina que está fazendo fotografia com os celulares. Na realidade, criamos uma nova linguagem de comunicação através da imagem que a gente captura nos nossos telefones. Mas fotografia é outra coisa (mais profunda).
Ela continua sendo o “espelho da sociedade”, como já definiu antes?
A fotografia oferece um recorte representativo da nossa sociedade. Existe um número de fotógrafos hoje que talvez não seja muito diferente do que existiu há vinte ou cinquenta anos. Então, eu acho que a fotografia continua cumprindo esse papel de ser a memória do corpo social do qual ela faz parte. Por exemplo, essa exposição (no MIS) é a lembrança do que eu vi em 1974, quando era um jovem fotógrafo, começando a minha carreira. Hoje, cinquenta anos depois, estamos eu e a minha esposa contando essa história. Para mim, é a demonstração mais clara dessa ideia da fotografia como espelho da sociedade.
Por que decidiu mostrar seu trabalho sobre a Revolução dos Cravos?
Olha bem, em 1974, eu tinha 30 anos. A Lélia tinha 27, e nós éramos originários de um país que vivia uma ditadura brutal. Quando aconteceu o golpe de Estado lá em Portugal para instalar um outro sistema, eliminando a ditadura salazarista, foi exatamente o momento em que o Garrastazu Médici estava passando o poder para um outro ditador, que seguia o comportamento dele. E foi o período de repressão mais terrível para o Brasil. Quando aconteceu a revolução em Portugal, foi extremamente importante na nossa vida. Então, eu queria mostrar esses registros aqui no Brasil.
As consequências de conflitos como guerras e das intervenções do homem na natureza parecem chamá-lo. Qual é o papel do fotógrafo ao registrar esses momentos? Qual é o papel do jornalista?
Assim como vocês, nós somos solicitados a informar. Eu estava nesses lugares para fazer minhas fotos e para comunicar. Todas essas fotografias foram publicadas (na imprensa), sem exceção. A fotografia, assim como o texto, de forma alguma é objetiva, ela é subjetiva. É com a sua ideologia que você fotografa. Em última instância, com a sua maneira de pensar.
Você se descobriu em depressão depois de tudo o que viu durante o trabalho que resultou em Êxodos. É possível fotografar o ser humano sem se envolver profundamente?
Não, não é possível. Você pode até encostar na superfície de uma ação e fazer um registro. Agora, fotografar mesmo, não. Para contar uma história, você tem que se integrar a ela. Em Portugal, por exemplo, eu gastei dois anos para fazer, tinha que ser meu lugar e eu tinha que ter uma identificação visceral com o que estava vivendo. A minha ideologia me levou a estar ali, e aquilo se transformou na minha história também. Esse envolvimento tem que existir nas histórias que você identifica como suas.
O que significou retratar a Amazônia?
Fotografando para Gênesis (projeto de 2013 sobre natureza e comunidades tradicionais), eu fotografei muito na Amazônia. Conheci as comunidades indígenas e tenho um enorme prazer em trabalhar com elas. Eu me senti na obrigação moral de fotografar, porque, cada vez que eu voltava lá, eu via que mais um pedacinho da Amazônia estava sendo destruído. Então, criei um projeto com a Lélia, que fez dezenas de viagens à Amazônia comigo. O resultado foi a exposição e um livro que a gente fez, ligados ao movimento indígena, ao movimento ambiental, na tentativa de ajudar a proteger esse ecossistema.
Você viveu em São Paulo durante seu mestrado em economia. Por que a cidade é a porta de entrada para muitas de suas exposições?
Eu adoro São Paulo, acho uma grande cidade. Adorei viver aqui. Hoje, nós temos um apartamento em São Paulo e outro em Paris. Aqui eu tenho a maioria dos meus amigos, é uma cidade que tem tudo. São Paulo, no Brasil, é muito para mim, se não for tudo.
Publicado em VEJA São Paulo de 17 de maio de 2024, edição nº 2893