Sucesso incontestável na literatura infantil com 40 milhões de livros vendidos, Ruth Rocha, 92, anda “movimentada” — como ela costuma dizer. Neste mês, a autora publica O Grande Livro dos Macacos, coleção de textos sobre o parente próximo dos humanos.
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“Tem gente que não gosta de sermos descendentes dos macacos, mas é melhor do que ter cara de jacaré ou girafa”, diz. A escritora tem uma tenda exclusiva na Feira do Livro, no Pacaembu (até 11/6). Em julho, será lançada a primeira adaptação audiovisual de sua obra, uma série baseada no best-seller Marcelo, Marmelo, Martelo (Paramount+).
Como está a vida aos 92 anos?
Estou bem, não tenho doença nenhuma. Tenho 92 anos, mas aparência de 91 (risos). Tenho uma família muito boa, amiga, unida. Minha irmã Rilda, 94 anos, me liga todos os dias — inclusive aos sábados e domingos — para ler um livro para mim, porque estou com a vista pior. Há anos ela faz isso, lemos mais de vinte livros juntas.
Qual estão lendo agora?
O Despertar de Tudo. É um livro (de David Graeber e David Wengrow) que faz a pergunta: por que existe diferença social? Ninguém tinha se perguntado isso antes do (filósofo Jean-Jacques) Rousseau. É um livro maravilhoso. Já lemos Guerra e Paz, Anna Karenina, um livro do Barack Obama…
A senhora irá encontrar os leitores na Feira do Livro, no Pacaembu?
Eu vou. Não vou ficar muito tempo. Vai ter uma tenda exclusiva da Ruth Rocha, tenho de ir. Não sei em qual dia. Provavelmente vou acordar e resolver. Tem dia que estou mais abatida, mais cansada. Vou no dia em que estiver mais disposta.
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A senhora andava escrevendo um novo livro. Quando vai sair?
Chama-se O Grande Livro dos Macacos. Está pronto, deve sair neste mês. Tem provérbios, histórias, brincadeiras, folclores sobre macacos. Quando escrevi o texto, achei sem graça. Guardei. Na pandemia, comecei a examinar coisas antigas e tive a ideia maravilhosa de completá-lo com a história da evolução. Somos todos descendentes de uma molécula que se modificou e criou a vida, então somos parentes de todas as formas de vida: dos lírios, das rosas, dos jatobás… Tem gente que não gosta de sermos descendentes dos macacos, mas é melhor do que ter cara de jacaré ou de girafa.
Marcelo, Marmelo, Martelo vai virar série de streaming, na Paramount+. Tem data para o lançamento?
Será lançada em julho. Não participei muito. Li a adaptação que eles fizeram, porque televisão é diferente de livro. Se inspiraram nas minhas histórias, mas foram um pouco além e colocaram coisas novas. Em resumo: eu gostei. Nem dei palpite. É um grupo bom que está fazendo.
Por que nunca tinha cedido os direitos das obras para adaptações?
Porque me traziam umas adaptações idiotas. Eu me lembro de uma, do Marcelo, que começava com uma bruxa em cena. Não tem nada a ver. Tentavam fazer o que eles gostavam, mas não o que eu tinha feito.
A senhora ainda escreve?
Não sou muito de rotina. Escrevi 200 livros sem rotina nenhuma. Escrevia de madrugada, no domingo… Eu trabalhava, né? Trabalhei na Editora Abril (na revista Recreio) enquanto escrevia (as principais obras). Atualmente, estou com poucas ideias. Assim que aparecer uma boa, eu escrevo.
Na era dos celulares, os livros infantis ainda vendem bem?
O Marcelo, Marmelo, Martelo ainda é meu livro que mais vende, e tem quase cinquenta anos.
Mas, se fosse lançado hoje, também seria um fenômeno de vendas?
Acho que sim. As crianças são loucas por ele. O Almanaque do Marcelo e da Turma da Nossa Rua (2020) vendeu um colosso. Eu vendo muito livro. Não gosto de dizer o quanto, porque não tenho certeza e já vendi mais (a Editora Moderna confirma uma média de 1 000 exemplares por mês). As crianças não são tão diferentes do que eram. Elas mudaram mais porque a educação mudou. A gente passou a dar mais atenção, a ouvi-las. Ficaram mais desembaraçadas, inclusive mais alegres. Mas, desde sempre, nem todas liam. Na sua escola tinham poucos leitores, né? Sempre foi assim. Quem foi bem alfabetizado gosta de ler. Ou é como ler em alemão: não gosta porque não entende.
A senhora cresceu na Vila Mariana. Que lembranças tem do bairro?
Eu morava em uma rua de terra. Conhecia todos os vizinhos, coisa que não conhecemos mais nem no próprio prédio. Tinha uma casa modesta. Minha mãe era acolhedora, fazia lanches para turma, pagava cinema. Tínhamos muitos amigos. Vinham uns meninos em casa e meu avô achava ruim: “Ruth, larga dos meninos”. Na verdade, eles vinham porque os pais deles não deixavam ler quadrinhos. Vinham ler os meus. E meu avô via malícia na situação… (risos)
Ali se forjou escritora?
Eu me tornei escritora porque cresci em uma família muito democrática, muito para frente. Por isso, meus primeiros livros eram antipreconceito, antirracismo, a favor dos direitos humanos, do feminismo. E todos publicados há trinta ou quarenta anos.
O que acha da acusação de que livros do Monteiro Lobato eram racistas?
Tenho notado um movimento de censura dos livros infantis. Eu sou contra a censura. O Brasil precisa se convencer de que é um país de negros, dar uma vida melhor aos negros, isso é importante. Mas me veio um problema do tamanho de um bonde. Eu dei para uma menina moreninha de quem gosto muito Reinações de Narizinho. Ela me disse: “Você não fica triste? Não gostei do livro. Tem muita coisa feia: ‘negra beiçuda, negra macaco’”. Respondi: “Não estou triste, você tem toda razão”. Percebi que ofendi a menina. Assim eu, a maior fã do Monteiro Lobato, que me influenciou muito, não posso dar um livro dele a uma criança. Agora, mexer no livro dos outros… Eu não mexo. Não vou reescrever livro do Monteiro Lobato. Mas estou tolhida de dá-lo a uma criança.
O que acha disso?
Eu não dou. Mas acho que as coisas vão se modificar. Daqui uns anos vão rever isso e os livros do Monteiro Lobato vão voltar, porque já vai ter outro ambiente. Um ambiente que não ofenda uma menina de 8 anos de quem gosto muito. Um ambiente melhor.
Publicado em VEJA São Paulo de 14 de junho de 2023, edição nº 2845