“Agora tem uma roda de samba em cada esquina”, diz o paulistano Thiago Martins, 39, que comanda o Boteco da Dona Tati com a mãe, Sebastiana, na Barra Funda. A frase é uma fiel descrição do que passou a acontecer nas calçadas do bairro, na Zona Oeste, mas não apenas ali. Do Centro às periferias, de redutos tradicionais a casas moderninhas, de ambientes com apelo religioso a espaços queridinhos do público LGBTQIA+, as rodas de samba estão em alta na cidade. “É um fenômeno muito legal, que gera renda para os sambistas. Mas é preciso evidenciar quem sempre lutou para manter essa cultura viva: as escolas e comunidades. É preciso lembrar a história do samba em São Paulo”, ele afirma. Aqui, Vejinha ajuda a fazer esse registro ao destacar uma seleção de endereços que têm agitado a cidade com o samba. Impulsionada pelo crescimento recente do Carnaval de rua, a cena paulistana combina bons serviços, diversidade de opções — e muita gente animada na calçada.
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Sucesso na Barra Funda
Nas noites de quarta a domingo, uma multidão toma a esquina das ruas Conselheiro Brotero e Brigadeiro Galvão, na Barra Funda. O motivo são as rodas de samba do Boteco da Dona Tati, comandado por Sebastiana Alves Martins, 67 (a dona Tati), e pelo filho Thiago, 39. Nascida em Estrela d’Oeste (SP), Sebastiana veio para a capital aos 13 anos, onde trabalhou como doméstica, metalúrgica e cobradora. Abriu o primeiro negócio em 2001, uma rotisseria que logo passou a ter sambas à noite. Em 2018, se mudou para o atual endereço. “Após a perda do meu irmão Ricardo (em 2016), minha mãe ficou deprimida. Passava o dia no bar, mas não entrava um cliente”, lembra Thiago, que decidiu então se dedicar ao negócio. Além de hambúrgueres artesanais, ele apostou nas rodas de samba — e a casa estourou. O espaço chega a receber 600 pessoas por noite, que ocupam as calçadas e fecham parte da rua. A programação valoriza as velhas guardas e compositores históricos. “Mantemos baixos os valores das porções e cervejas. Nasci e cresci em Itaquera, não quero um bar excludente aos jovens de periferia”, ele diz.
Boteco da Dona Tati. Rua Conselheiro Brotero, 506. Qua. a sex., 17h à 0h; sáb. e dom., 12h à 0h.
Não deixa a casa morrer
Há 22 anos em Pinheiros, o Ó do Borogodó não tem placa na porta. Não precisa. Famoso pela qualidade das rodas de samba, porém, o espaço vive em dificuldades desde 2013. “A pandemia foi quase o tiro de misericórdia”, diz a sócia Stefania Gola, 51. O desafio se tornou ainda mais duro quando o sócio Leonardo Gola, irmão de Stefania, morreu de câncer em 2021. A casa anunciou o fim, mas foi salva por uma vaquinha que arrecadou 300 000 reais. No ano passado, outra surpresa. “Ao tentar renovar a locação, soubemos que os donos iriam vender o imóvel”, diz Stefania. Até o momento, não há acordo. “Notificamos a Stefania e demos o preço. Temos propostas com pagamento à vista”, diz Felippe Barretto, porta-voz dos proprietários, que pedem 2,35 milhões pelo sobrado. Um requerimento, em análise na prefeitura, quer que o espaço se torne patrimônio cultural. Há, também, uma ação de despejo. “Está em fase de citação dos inquilinos”, diz Francisco Bloch, advogado responsável pelo processo.
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Ó do Borogodó. Rua Horácio Lane, 21. Qua. e qui., 21h às 2h; sex. e sáb., 22h às 3h; dom., 20h à 0h30.
Tabelinha com o futebol
“Nosso repertório é voltado a nomes como Zeca Pagodinho e Arlindo Cruz”, diz o paulistano Fábio Henrique, 36, vice-presidente do Cruz da Esperança, clube de futebol da Casa Verde onde o samba tem atraído até 1 000 pessoas nas noites de sexta-feira e sábado. O agito costuma ir até as 3 da manhã. Organizadas ao lado do campo, as rodas surgiram em 2011, como uma extensão do bate-papo entre os frequentadores do bate-bola, mas o público cresceu e os eventos se tornaram uma renda importante para o clube. “São responsáveis por 60% da nossa receita, o restante é de aluguel do gramado”, ele afirma.
Samba do Cruz. Rua Marambaia, 802, Casa Verde. Sex. a partir das 21h e sáb. a partir das 22h.
Famosos na roda
“A maior roda de samba do Brasil”: assim se apresenta o Quintal dos Prettos, que no primeiro domingo de cada mês reúne até 3 000 pessoas na Vila Maria Zélia, na Zona Leste, para uma roda de samba de quatro horas sem intervalos e “sem microfone ou qualquer aparato tecnológico”, dizem os irmãos Magnu Sousá e Maurílio de Oliveira, que formam a dupla musical Prettos e fundaram o badalado espaço em 2018. Não raro, o público tem presenças ilustres como a cantora Maria Rita e o rapper Emicida. Magnu e Maurílio eram parte do finado — e aclamado — conjunto Quinteto em Branco e Preto, no qual tocavam com artistas como Beth Carvalho, além de serem fundadores da comunidade Samba da Vela. Sambistas de berço, são filhos de músicos que chegavam a receber em casa figuras como Adoniran Barbosa e Cauby Peixoto. “Quem vive isso na infância é privilegiado”, diz Magnu. Nos encontros dominicais, eles sobem ao palco, instalado no centro de uma quadra esportiva, às 16h e promovem a roda feita só de voz e instrumentos — o microfone é usado para emergências, como avisar sobre uma criança perdida ou chamar a produção. Inspirado nos redutos tradicionais do gênero, o Quintal reúne um público de diferentes gerações. “Assim como aprendemos com os mais velhos, queremos passar a tradição do samba aos mais novos”, diz Maurílio. Além da roda, o espaço tem uma feira de empreendedores negros e periféricos que vendem acessórios, roupas e comida. “É uma roda para fortalecer o povo preto”, concluem.
Quintal dos Prettos. Rua José Pinheiro Bezerra, 100. Todo primeiro domingo do mês, 14h às 20h.
Na cadência da diversidade
Quando o paulistano Daniel Carvalho, 42, abriu um bar no Bixiga, em fevereiro de 2022, não imaginava que o espaço se tornaria um reduto do samba, menos ainda que ganharia a simpatia do público LGBTQIA+. No início, a programação incluía DJs, até que um show do Samba do Mundão fez a casa lotar. “Decidi colocar a bandeira do arco-íris na parede e o pessoal começou a chegar. Eles dizem se sentir bem aqui”, conta. A agenda musical inclui grupos de mulheres e pessoas LGBTQIA+, como o Samba Para Todas, as Mulheres que Dão Samba e os Sambixas — o Mundão é único conjunto masculino na programação fixa. Autoproclamado “o samba com mais diversidade em São Paulo” (crianças e pets, por sinal, são bem-vindos), o espaço tem drinques autorais e clássicos, mas as opções de comida são restritas: espetinhos de carne, frango e linguiça, servidos na calçada. No próximo mês, o Sirigoela muda para outro imóvel na mesma rua, a Treze de Maio, para dar conta de comportar o público que chega a 300 pessoas às sextas e sábados.
Sirigoela. Rua Treze de Maio, 70. Qui. e dom., 19h à 1h; sex. e sáb., 18h às 2h.
Música e feijoada
Feijoada, caipirinha e roda de samba. Essa é a programação dos sábados no Godê, casa que combina bar (o Boteco Godê) e espaço musical (o Anexo Godê) em Campos Elíseos. O público costuma saborear a feijoada até as 15h, depois pular para o Anexo, onde o samba segue até as 22h. A programação inclui grupos tradicionais como Samba da Treze e Samba do Aguidá, que se revezam com destaques recentes como Samba de Dandara, Samba da Chinela Voadora e Samba de Vitória. Mesmo com cerca de 250 pessoas por encontro e parte do público na calçada, é possível circular tranquilamente perto da roda de samba. De quarta a sexta, o espaço acolhe outros projetos, como o Vitrola Aberta, que convida clientes a trazer vinis para tocar na casa, e festas como Iracema e Forró dos Ratos.
Anexo Godê. Rua Conselheiro Nébias, 1517. Qua. a sex., 17h às 23h; sáb., 15h às 22h.
Novidade no Centro
Aberto em janeiro, o Escarcéu reúne o público descolado da Santa Cecília e Vila Buarque em rodas de quarta a sábado. “São os dias mais cheios”, diz o sócio Rafael Mimi, 38, músico com passagem pelo NX Zero — outra proprietária é Fernanda Toth, 43, uma das fundadoras do bloco Casa Comigo. Nas quartas-feiras, o Pagoterapia comanda a roda. “Toca desde pagodão até samba raiz”, diz Mimi. A casa é irmã mais nova do Goela, em Pinheiros, também dos sócios.
Escarcéu. R. Santa Isabel, 149. Qua. a sex., 18h às 0h; sáb., 12h às 0h.
Sambar com fé
A fé não está apenas no nome do Bar Templo, na Mooca: as referências à religiosidade vão desde a decoração com anjos e fitinhas do Senhor do Bonfim até as orações espalhadas pelas paredes. O cardápio, impresso na réplica de um antigo folheto de missa, tem pratos como a batata celestial, o salve jorge e as iscas de iemanjá — e inclui cervejas e outras bebidas alcoólicas para um público diverso. “É um ‘bar da fé’ que celebra todas as crenças, em especial as cristãs e de matriz africana”, diz o proprietário Murilo Oliveira, 48. Aberta há treze anos, a casa tem samba na programação todos os dias da semana, exceto nas sextasfei ras, dedicadas ao forró. Todo fechado e com capacidade para 500 pessoas, lembra mais uma casa de shows que uma roda de samba tradicional. No palco, passaram nomes como Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Maria Rita, Péricles, Xande de Pilares e Diogo Nogueira. “O Templo nasceu sob as bênçãos de todos os santos, deuses, orixás e entidades”, diz Murilo.
Templo — Bar de Fé. Rua Guaimbé, 322. Seg. a sex., 20h às 2h; sáb., 14h às 3h; dom. 18h à 0h.
Ordem na bagunça
Quem frequenta o Bar e Tabacaria Grandes Amigos, na Vila Anglo, provavelmente já viu a proprietária Vânia Florio, 61, passar um pito em algum cliente que atrapalha a banda ou fura a fila. Pontualmente às 23h, a severa e carismática empresária baixa as portas para evitar reclamações da vizinhança — ainda que tranque algum freguês para dentro, depois instruído a sair pela lateral. A postura firme assegura a ordem no bar que ela comanda há 34 anos, montado na garagem de uma casa comprada pela avó na década de 1930. O espaço tem reunido cerca de 200 pessoas nas rodas de samba de quarta a domingo. “Quando abri, era uma mercearia. Comecei a vender bebidas para não quebrar”, ela diz. Em 2018, a cantora Anelis Assumpção fez um aniversário ali e o bar passou a atrair um público de artistas. Vânia, não sem resmungar, topou a ideia de fazer rodas de samba regulares. Foi tal o sucesso que a agenda de bandas está cheia até dezembro.
Bar e Tabacaria Grandes Amigos. Rua Gurupá, 3. Seg. e ter., 11h às 20h; qua. a sáb., 11h à 0h; dom., 13h às 21h.
Auxílio luxuoso à Luz
O imóvel, da década de 1930, era um restaurante que sucumbiu à pandemia. Téo Bressan, 53, morador da Vila Sá Barbosa, na Luz, onde fica o estabelecimento, resolveu apostar no ponto — e assumir as dívidas. Em 2021, junto à cantora Railídia Carvalho, 52, reabriu o espaço como um bar e restaurante que leva o nome da vila. Tem samba aos sábados e em datas especiais. Na roda, passaram nomes do quilate de Moacyr Luz e Noca da Portela. “É um lugar família, para tomar uma cerveja na calçada à tarde, algo simples”, diz Railídia. A dupla luta para mantê-lo aberto. “Sobrevivemos graças aos amigos. Temos um projeto no qual eles cozinham e doam o lucro para o bar”, diz Bressan. O repertório tem Dona Ivone Lara, Candeia, Aldir Blanc e outros cânones, mas inclui a nova safra do samba paulistano em uma programação que rola uma vez por mês até novembro. Vale provar os pasteizinhos de carne, feitos pela mãe de Téo.
Restaurante e Bar Vila Sá Barbosa. Rua Jorge Miranda, 691. Sáb., 15h às 22h.
Publicado em VEJA São Paulo de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858