“Não é que você seja gorda, mas dá para melhorar.” Essa foi uma das diversas opiniões sem noção que ouvi durante a apuração da minha primeira reportagem de capa na carreira jornalística. Eu, uma década atrás, aos 21 anos, atuava como estagiária. Tinha começado minha trajetória havia pouco tempo na Vejinha, casa que me acolheria durante onze anos. Em uma reunião de pauta, sugeri que acompanhássemos uma aspirante a modelo em seus testes em agências. Desconfiava que o processo poderia ser cruel (e acertei, infelizmente). Meu editor propôs, então, que eu mesma enfrentasse as sabatinas para relatar a experiência.
Eu tinha consciência do meu objetivo como repórter nessas visitas, mas era meu corpo e minha aparência “reais” postos à prova, com opiniões negativas proferidas muitas vezes na frente de diversas outras pessoas e que balançaram minha autoestima. Nas dez agências que visitei, me senti um pedaço de carne. Pediram para eu virar de lado, prender o cabelo, levantar a blusa e mostrar minha barriga, apertaram meus “pneuzinhos”… Lembro que havia acabado de comprar um jeans justo e o escolhi para ir a uma da provas. Uma das avaliadoras lançou sem cerimônia: “Essa calça não te favorece”. Foi um balde de água fria, não vou negar, e acabei nunca mais usando a peça novinha.
Na época, tinha 1,75 metro de altura e 61 quilos. Os conselhos que recebi passaram de enxugar 6 quilos a perder 11 centímetros de cintura. E tudo parecia muito simples — “isso resolve com abdominal” e “é só trocar o açúcar por adoçante”— ou rápido — “perca peso e volte em dez dias”. Outro analista olhou para as pintinhas do meu rosto — “só de um lado, são vinte” — e determinou que eu deveria mandar retirá-las em um dermatologista. Ainda me orientaram a descolorir os pelos dos braços, delinear a sobrancelha, afinar as pernas, esticar o pescoço para “não parecer uma velha”, cortar o cabelo em uma “superfranja”, e por aí vai.
A capa de julho de 2010: mudanças no universo da moda desde então
Ouvi tantas dicas diferentes que pensei nos adolescentes ao meu lado nesses testes, que tinham a profissão como sonho. Presenciei gente chorando, rezando, aflita, vinda de outro estado. E pensei como muitos deles talvez tentassem se moldar a esses padrões de maneiras pouco saudáveis, ou sempre se sentissem diminuídos. Até hoje, vez ou outra recebo mensagens de interessados que encontraram a reportagem na internet e desejam saber qual caminho tomar.
Consegui uma vaga em cinco das agências visitadas, de perfil comercial e que aprovavam de baciada — “buscamos de anões a obesos”, me disseram. Esses endereços pregavam o pagamento de books de fotos de até 2 500 reais para começar na profissão. Muitos jovens desembolsavam o dinheiro, mas não eram chamados para um trabalho sequer. Acabei rejeitada nas cinco outras agências, mais renomadas e especializadas em passarela. Não fui maltratada em nenhum desses locais, vale dizer. Só consistia em um processo bastante direto — que podia derrubar as mais firmes das autoconfianças — e fazia parte de um sistema bem determinado de medidas e beleza. Ou seja, ali não adiantava exibir menos de 1,70 metro de altura e não seguir os tamanhos clássicos 90-60- 90. E esse era o caso de muita gente ao meu lado (inclusive o meu), mas que nutria esperanças irreais. Percebi, assim, quase uma perda de sensibilidade no tratamento dos agentes, já que os candidatos eram mesmo mercadorias — “você, para mim, é um produto”, escutei de um deles.
Após as sessões de constrangimento, minha autoestima, entretanto, ganhou um empurrão em uma sessão de fotos para a capa da revista. O fotógrafo André Schiliró, que já clicou famosas como a top Gisele Bündchen, me acolheu em seu estúdio. A produtora da Vejinha escolheu acessórios e vestidos de grife para os registros. Um maquiador e um cabeleireiro de um grande salão me prepararam. Eu me senti um peixe fora d’água na maior parte do tempo, mas Schiliró conseguiu fotos lindas — na hora de posar, eu devia sempre alongar o pescoço, colocar o queixo um pouco para frente e relaxar os lábios.
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Quando a revista saiu, surpreendi minha família e meus amigos de faculdade. No trabalho, repórteres fizeram, de brincadeira, uma fila para que eu autografasse a capa. Tenho parentes que até hoje guardam um exemplar. Eu mesma devo ter uns cinco (poxa, não é todo dia que se estampa a capa de uma revista, certo?).
Por coincidência, uma das minhas últimas reportagens na Vejinha, no fim do ano passado, foi também sobre o universo das modelos. Dessa vez, no entanto, a matéria falava sobre como os padrões estavam mudando. Certamente, ainda há um determinado tipo de beleza mais “celebrada”, com corpos altos, magros, brancos… Porém, em um mundo no qual a publicidade está mais diversa e até o desfile da Victoria’s Secret acabou ficando datado, vê-se a busca por um visual moderno e interessante, com atitude. Se o profissional tiver história, melhor ainda. Entre os personagens dessa reportagem, aparecia um rapaz negro com vitiligo, uma senhora de 64 anos, um homem transexual e uma jovem com sobrancelhas enormes. Modelos com belezas mais reais e múltiplas, que provavelmente naquela época seriam prontamente descartados — como eu fui.
Publicado em VEJA São Paulo de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711.