Vestida com uma fantasia de gorila, a palhaça Fran leva o grande pênis de borracha que está em um suporte no meio das suas pernas até a boca borrada de batom vermelho e diz “Testando”. O objeto faz a função de microfone. Ela confere o som com a plateia: “Está chegando aí?”. O público assente e ela diz “É só ter um desse que todo mundo te escuta”. Essa é uma das cenas de King Kong Fran, espetáculo da carioca Rafaela Azevedo, 31, que volta a São Paulo a partir de 3 de outubro, no Teatro MorumbiShopping. É a primeira temporada da peça na capital: em junho, a atriz fez quatro sessões no Festival Circos, do Sesc, cujos novecentos ingressos esgotaram em três minutos.
+Flávia Reis questiona bordão de “mulheres histéricas” em solo cômico
Fran deve encontrar plateias cheias por aqui de novo, já que, até o fechamento desta edição, mais de 70% dos tickets já haviam sido comprados. O sucesso de King Kong Fran é resultado da própria personagem-título. Inspirada na atração de circo Monga, a mulher gorila, ela inverte os papéis de gênero e vira “opressora de homens” no palco. Com humor, brinca com os espectadores e faz a parcela masculina do público sentir na pele o que as mulheres passam. Confira a entrevista com a atriz.
Como nasceu a Fran?
Ela nasceu quando eu estava no Grupo Off-Sina, no Rio, há uns dez anos. Em 2013, o circo já havia avançado bastante na questão de gênero, mas todos os números que os professores passavam — havia poucas mulheres dando aula — eram misóginos, sobre bater na cara da mulher, passar a mão… Eu não achava aquilo engraçado, era agressivo. Então, comecei a fazer com os homens o que eles faziam com a gente e as mulheres do grupo e da plateia começaram a se identificar comigo. Eu não pertencia àquele lugar, achavam que o que eu fazia não era palhaçaria, que a Fran era uma atriz. Depois, levei a Fran para o Instagram. Tive de adaptá-la para parecer uma influenciadora, mas com personalidade de palhaça. Daí veio minha primeira viralização, em 2020, e isso foi crescendo, até que derrubaram minha conta recentemente.
Por que a conta foi derrubada? Quais medidas você tomou na época?
Quando meus vídeos furaram a bolha, muitos usuários começaram a denunciar meu conteúdo e compartilhar em páginas de red pill, como se eu fosse uma ameaça aos homens. Chorei muito. Acionei um advogado, mas escolhi não processar ninguém pelo tempo e pelo desgaste que causaria. Hoje estou com uma conta reserva que já cresceu e virou minha oficial e sei como me proteger melhor nas redes. Aprendi que existem coisas que só posso fazer no teatro, que devo usar o Instagram para chamar as pessoas para esse lugar seguro e para uma reflexão, um humor mais raso.
+“No Oficina, fiz espetáculos que me revolucionaram”, diz Otávio Augusto
Você contou em entrevistas que um dos motivos para criar a peça foi um estupro que sofreu aos 21 anos. Até para que sirva de alerta e denúncia, você se sentiria à vontade para nos contar o que exatamente aconteceu?
Claro. Foi um estupro cometido por um médico, enquanto eu estava dopada em uma consulta. Uma coisa horrível, mas ao mesmo tempo comum. Depois da peça, passei a receber muitas mensagens de mulheres me contando que haviam sofrido também um estupro. Só consegui elaborar o trauma depois de dez anos, com o espetáculo. Além da terapia, a palhaçaria foi uma cura para mim. Quero que, assim como eu, as mulheres que sofrem abuso saibam que não precisam ficar caladas, que elas têm que falar.
Nem sempre é fácil transformar uma boa peça em um sucesso de bilheteria. Por que acha que a Fran conseguiu?
Eu criei uma estratégia de marketing digital mesmo. Tanto que a personagem foi construída com a ajuda do público, a partir de caixinhas de perguntas no Instagram, por exemplo. A peça foi feita com financiamento coletivo, no qual eu arrecadei cerca de 30 000 reais com apenas 311 benfeitores. Quando estreou, esgotou em horas e essas pessoas compraram ingressos mesmo tendo direito a eles de graça. Era como se eu tivesse uma assessoria de imprensa de trezentas pessoas (risos), o que fez com que o sucesso crescesse de forma exponencial. Sou muito grata aos benfeitores e ao meu público.
O espetáculo costuma gerar diversão ao público feminino e constrangimento ao masculino. Você já teve que lidar com reações ruins de homens durante a peça ou fora, na vida pessoal?
No Instagram, todos os dias. Já no palco, aconteceu agora no início de setembro, quando me apresentei em Campinas. Um senhor de uns 70 anos de idade, que estava com a esposa, levantou no meio da peça e gritou “Vou pegar os meus 80 reais de volta!”. Foi perfeito porque na cena seguinte eu narrava uma situação que havia acontecido comigo, quando um dono de um circo ficou histérico porque eu tinha discordado dele. O senhor saiu do teatro e eu fiz a cena toda narrando o que ele havia acabado de fazer. O público teve uma catarse de tanto rir porque aquilo estava acontecendo na nossa frente.
+‘Ângela’, com Isis Valverde, é cinebiografia limitada ao feminicídio
Você fez participações no Porta dos Fundos. Alguns humoristas de lá e o próprio programa já foram alvo de polêmicas sobre os “limites do humor”. O que acha dessa questão?
Ainda vai sair a nota oficial, mas agora faço parte do elenco fixo. Estou muito feliz. Até minha chegada no Porta, conversei muito com eles sobre isso. Acredito que tudo tem limite, não só o humor. As mulheres, as pessoas negras, trans ou com deficiência, por exemplo, têm muitos limites na vida. Então, quando elas produzem humor, elas o fazem a partir dessa perspectiva. Quando um homem branco, cis e hétero produz humor, ele produz a partir da experiência de vida ilimitada dele. O Porta está em um momento muito interessante de diversidade, com contratações de humoristas que vêm de realidades diferentes e conseguem colocar o seu DNA na criação. Sempre haverá erros, inclusive meus, mas precisamos escutar e mudar nossas abordagens.
Quais são seus próximos projetos após o sucesso da Fran? Ela pode virar série para a TV?
Sim. Estou trabalhando muito com a galera do Porta dos Fundos para lançar projetos audiovisuais da Fran. Quero lançar videocast, programa, série, filme, ir além das redes sociais. Quero que a Fran entre na casa das pessoas de várias formas, tanto pelo áudio quanto pela TV e pelo cinema.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860