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Quarteto de Cordas da Cidade celebra Beethoven na Praça das Artes

Mais tradicional formação de câmara de São Paulo, grupo ganhou uma sala própria em 2013 e vem tocando peças de compositor alemão

Por Jonas Lopes
Atualizado em 5 dez 2016, 15h28 - Publicado em 11 nov 2013, 17h07
Mário de Andrade - capa 2201
Mário de Andrade - capa 2201 (Régis Filho/)
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Quatro músicos ocupam, em um fim de tarde de inverno, a compacta e intimista capela de concreto armado projetada por Paulo Mendes da Rocha para o Palácio da Boa Vista, em Campos do Jordão, quando, de repente, em meio a uma peça complicada do britânico Benjamin Britten, a luz acaba. Ainda não está de todo escuro, mas ler a partitura em pleno lusco-fusco tornou-se uma tarefa complicada. Os instrumentistas, então, decidem se reunir ao redor de uma lâmpada de emergência, a poucos centímetros um do outro. Convidam a plateia para se aproximar e dão continuidade à apresentação, mesmo que tocando praticamente de memória.

Essa cena aconteceu em julho deste ano, durante o Festival de Campos do Jordão, e ajuda a dar uma noção do entrosamento da atual formação do Quarteto de Cordas da Cidade, o mais tradicional grupo de câmara de São Paulo, composto por Marcelo Jaffé (viola), Betina Stegmann, Nelson Rios (violinos) e Robert Suetholz (violoncelo). “Foi uma atmosfera louca naquele breu, mas deliciosa. Não temos mais os olhos dos 20 anos”, conta Jaffé. Os quatro estão juntos desde 2002, quando Rios passou a integrar o conjunto. A química surgiu imediatamente, ajudada por fatores externos. Três dias depois de começarem a tocar juntos, viajaram para se apresentar em Chapecó, interior de Santa Catarina. Condições climáticas ruins desviaram o avião para Curitiba. De lá pegaram uma van saindo no comecinho da manhã e, poucas horas depois, subiram no palco em um dia gelado, com termômetro marcando apenas 7 graus. “O concerto foi maravilhoso, deu tudo certo. Até pelas circunstâncias, fomos obrigados a virar íntimos da noite para o dia”, lembra Betina.

Em 2013, o Quarteto de Cordas da Cidade ganhou um belo presente: um espaço próprio para realizar seus concertos. A Sala do Conservatório fica na Praça das Artes, bem perto do Teatro Municipal. “Sempre fomos os filhos menorzinhos do Municipal, era complicado conseguir espaço lá. Estávamos ensaiando e de repente a Sinfônica Municipal chegava a nos expulsava. No dia seguinte era o balé, no outro o coral e por aí vai. Aqui não: a prioridade somos nós”, diz Jaffé. Encantados com a acústica primorosa do local, eles decidiram realizar um ciclo completo com os quartetos de Ludwig van Beethoven, considerados a Bíblia do formato, pois “a sala merece aquilo que existe de melhor”. A programação com peças do compositor alemão vai até dezembro. São duas apresentações por mês, uma só de Beethoven – a próxima acontece nesta quinta-feira (14) – e a outra com algum convidado. Caso de André Mehmari, com quem o grupo acaba de gravar uma obra escrita pelo próprio pianista e compositor fluminense, dedicada aos quatro e intitulada Angelus. “Assistimos juntos aos pianistas Nelson Freire e Martha Argerich na Sala São Paulo, em 2004. Na empolgação, eles me pediram uma peça. Escrevi em poucos dias”, conta Mehmari.

O grupo foi criado em 1935 por Mário de Andrade, que estava à frente do Departamento de Cultura de São Paulo. A gestão do autor de Macunaíma foi inovadora: Mário decidiu que, além de uma orquestra de ópera, o Teatro Municipal deveria ter outros corpos estáveis, caso de um balé, um coral para as récitas líricas e outro para música brasileira e, sobretudo, um quarteto de cordas que ajudasse a divulgar o repertório de câmara não apenas do país, mas de toda a ampla tradição europeia. Nesses 78 anos de atividade, o Quarteto de Cordas da Cidade cumpriu a função de levar composições intimistas ao público paulistano, executou várias estreias, inclusive de trabalhos de Heitor Villa-Lobos, e ganhou peças dedicadas de autores como Osvaldo Lacerda. O grupo nasceu como Quarteto Haydn, virou Quarteto de Cordas Municipal em 1954 e possui o nome atual desde 1981. A mais longeva formação tocou junta de 1944 a 1979, e tinha em suas fileiras Gino Alfonsi, Alexandre Schaffman (violinos), Johannes Oelsner (viola) e Calixto Corazza (violoncelo). Ugo Giorgetti realizou em 2004 um documentário sobre essa combinação clássica, Variações Sobre um Quarteto de Cordas.

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Como casamento

A mitologia em torno do dia a dia de um quarteto de cordas desperta o interesse dos fãs de música erudita há gerações pela dificuldade de fazer tão poucas cabeças funcionarem de maneira harmoniosa. O genial escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe definiu o formato do quarteto como “quatro pessoas inteligentes conversando entre si”. O crítico do jornal O Estado de S. Paulo, João Marcos Coelho, opina que apenas depois uma década um quarteto de cordas consegue de fato alcançar a maturidade plena. “Essa formação atual já toca por telepatia, é impressionante. Estão colhendo os frutos da longa convivência”.

O primeiro a defender a tal da química é Marcelo Jaffé. Para ele, o elemento é tão importante quanto a competência, visto que nem sempre quatro excelentes músicos tocando juntos vão conseguir um resultado de qualidade. “Temos que ser poderosos como um corredor de 100 metros rasos, precisos como um cirurgião cardíaco e sensíveis como um poeta”, explica ele.  “Nossa maior virtude é ter quatro mentalidades, quatro interesses, quatro sensibilidades. E nosso maior problema é fazer com que os quatro entrem em acordo em todos os aspectos. No fim, a gente percebe que, individualmente, cada um conta muito pouco. Quando encontramos a unidade, surge o quinto elemento, que é o Quarteto de Cordas da Cidade. Quando não chegamos ao consenso o quinto elemento resolve”. E finaliza: “é como estar casado com três pessoas ao mesmo tempo”. Jaffé sabe bem o que diz: é marido da colega Betina. “Não dá para não conhecer a fundo a vida pessoal de cada parceiro. Temos que lidar com muitos assuntos do cotidiano, desde a hora do ensaio, a cadeira que vamos usar e o tipo de voo que vamos pegar numa turnê até quando alguém precisa levar o filho ao médico”, diz. Juntos, os quatro já visitaram países da América do Sul e Central. Estiveram em Damasco no fim de 2010, poucos meses antes de estourar a guerra civil síria.

 

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Paulistano, Jaffé, de 50 anos, é também o integrante mais antigo. Entrou em 1985, com apenas 22 anos. “Isso aqui já é um projeto de vida, estou há mais tempo dentro do que fora do quarteto. Sem falar que eu via as formações antigas desde a adolescência, quando era estudante”. O americano Robert Suetholz, o Bob, tem 53 anos, e após se casar com uma brasileira se mudou para o Brasil em 1985. Foi membro da Osesp na época de vacas magras da orquestra, e também da Osusp, e está no grupo desde 1991. Bob relembra o processo de naturalização para poder se tornar funcionário da prefeitura. “Estava numa sala cheia de bolivianos. A juíza me perguntou se eu tinha certeza de que queria virar brasileiro”, ri. Nascida em Buenos Aires e radicada no Brasil desde a infância, Betina Stegmann entrou em 1994, como segunda violinista, e não conseguia se acostumar ao posto – “exige um tipo específico de inteligência que eu não consigo ter”, brinca ela, que tem 49 anos. Foi apenas com a saída de outra musicista que ela resolveu sentar na cadeira de primeiro violino, para não mais sair. Caçula da turma, aos 48 anos, o piracicabano Nelson Rios entrou há onze anos. “Eu nunca havia tocado em quarteto, só em orquestra. Então no começo passei por um período de aprendizagem de repertório, mas me adaptei rápido”, afirma.

A maior particularidade do Quarteto de Cordas da Cidade, no entanto, talvez seja o aspecto didático de suas apresentações. Para aproveitar a desenvoltura retórica de Marcelo Jaffé – ele é professor da USP, assim como Suetholz; Betina é docente da Faculdade Cantareira e Rios dá aulas particulares –, o conjunto introduz as obras aos espectadores antes de tocá-las. Cumpre assim a função de educação estética da população paulistana, sonhada por Mário de Andrade em 1935. “Existe o velho estigma do ‘eu não entendo de música erudita’. As pessoas têm medo”, diz Jaffé. “Ora, posso apreciar pintura e arquitetura sem ser especialista no assunto. A gente percebe que o público fica mais focado quando situamos as composições e estabelecemos uma jornada para trazê-los para perto, até pelo espírito original da música de câmara, de um grupo fazendo música para poucos amigos em espaços pequenos. Esse é nosso grande desafio”.

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