“O teatro não precisa de mim: eu que preciso dele”, diz Maria Fernanda Cândido
Morando em Paris desde 2018, a atriz retorna aos palcos paulistanos com 'Balada Acima do Abismo', adaptado da obra de Clarice Lispector

Quando subir ao palco do novo Teatro-D-Jaraguá, em pleno aniversário de São Paulo (25 de janeiro), a atriz Maria Fernanda Cândido, 50, estará se sentindo em casa. Não apenas pelo retorno à cidade onde viveu a maior parte da vida, ou mesmo por novamente mergulhar no universo de Clarice Lispector (1920-1977) — já explorado por ela no teatro e no cinema. A sensação familiar vem do amor pela arte teatral. “O palco é o lugar onde me sinto acolhida”, diz a atriz, que nos últimos seis anos tem se dedicado a trabalhos internacionais, sobretudo para o cinema. “O teatro não precisa de mim: sou eu que preciso dele.” Com direção de Gonzaga Pedrosa e concepção e adaptação de Catarina Brandão, o monólogo Balada Acima do Abismo mergulha nos escritos de Clarice e propõe uma encenação que dialoga com a música clássica, executada ao vivo pela pianista Sonia Rubinsky. Com apresentações de 25 de janeiro a 9 de fevereiro, o espetáculo marca a inauguração do Teatro D-Jaraguá, instalado no Hotel Nacional Inn Jaraguá, no centro da cidade. Confira a entrevista a seguir.
Como nasceu o novo espetáculo?
Ele tem a concepção e a adaptação de Catarina Brandão (jornalista e diplomata brasileira), que também vive em Paris e idealizou o espetáculo, em 2019, para comemorar o centenário de Clarice Lispector. Ela soube que eu estava envolvida com outra obra inspirada em Clarice, o filme A Paixão Segundo G.H., de Luiz Fernando Carvalho, e me chamou para o projeto. Foi muito bom porque eu estava totalmente imersa no universo da escritora. A estreia atrasou por causa da pandemia e ocorreu em 2021. O formato, concebido para espaços mais intimistas, era o de recital dramático, em francês. Fizemos duas temporadas, de cerca de três meses cada, a pianista Sonia Rubinsky e eu. Foi difícil achar espaço na agenda dela, que é uma pianista premiada e se apresenta no mundo todo. Mas conseguimos. A música desempenha um papel fundamental nessa narrativa. E Sonia interpreta peças que dialogam com os textos, intensificando o lado emocional do espetáculo.
E de onde vem o nome, Balada Acima do Abismo?
O título é inspirado no poema Visão de Clarice Lispector, de Carlos Drummond de Andrade, escrito em 1977. A metáfora do abismo, presente ao longo do processo criativo, fala não apenas do caos, mas da vastidão do desconhecido e o mergulho na subjetividade. Catarina selecionou trechos que revelam aspectos profundos da obra da Clarice, como a espiritualidade, o feminino, a infância, a vocação literária e a paixão pela língua portuguesa.
Qual a expectativa de voltar ao teatro no Brasil? O formato da peça será o mesmo?
Eu já estava com vontade de trazer o espetáculo para o Brasil quando surgiu o convite do Darson Ribeiro, do Teatro-D-Jaraguá. Foi perfeito. Ainda mais porque foi nesse mesmo espaço (antes da reforma) que, há dezoito anos, eu encenei Pequenos Crimes Conjugais (de Éric-Emmanuel Schmitt), dirigida por Marcio Aurelio. Aqui, serão dez apresentações, que além da direção de Gonzaga Pedrosa tem cenário e figurino de Fábio Namatame e iluminação de Caetano Villela. Ou seja: é muita gente boa reunida. Mexemos no formato, que não é mais um recital, mas ainda conta com a participação de Sonia. Esse novo formato, inclusive, será levado para a França, para uma nova temporada teatral, ainda neste semestre. Aliás, neste primeiro semestre do ano, pretendo me dedicar ao teatro.
Por alguma razão específica?
Porque é no palco que eu me sinto mais feliz e acolhida. Me sinto em casa, ao lado da minha turma. E, de tempos em tempos, eu preciso retornar ao teatro para me recarregar e sair renovada. Nesses anos morando na França, fiz principalmente cinema, não apenas aqui, mas na Inglaterra, na Itália e em Portugal. Para mim, o teatro é um alimento para a alma. Estar no palco é uma experiência radical, de vida ou morte, onde fazemos um pacto de confiança com o público. O teatro celebra o presente e cria uma conexão com a plateia que ali está, um encontro que nunca mais vai se repetir.
Você está mais uma vez às voltas com os textos de Clarice Lispector. Por que ela, novamente?
O meu primeiro contato com a escritora foi na escola, com A Hora da Estrela. Mais tarde, li A Descoberta do Mundo e me apaixonei pela obra dela. Mas foi A Paixão Segundo G.H. o livro que mais me impactou e que, curiosamente, acabou virando filme pelas mãos da mesma pessoa que me presenteou com ele: o diretor Luiz Fernando Carvalho (o filme, de 2018, rendeu a Maria Fernanda o prêmio de melhor atriz no Festival de Siena, na Itália). O que mais gosto é como Clarice abraçou os paradoxos da vida e deu voz a diferentes esferas do feminino. E o interessante é que ela tem sido descoberta pelo público francês.
Falando em francês, como tem sido viver na França?
Nestes últimos anos, o que mais fiz foi viajar. Acho que não fiquei mais do que quatro meses sem sair para realizar algum projeto no Brasil ou em outros países, como Itália e Inglaterra. Estive em Recife, por exemplo, para as filmagens de O Agente Secreto, do diretor Kleber Mendonça Filho (o suspense, ambientado nos anos 1970, tem Wagner Moura como protagonista e estreia prevista para este ano). Mas posso dizer que sou feliz porque aprendi a lidar com as diferenças culturais. E que nunca me senti tão brasileira. Morando fora a gente consegue se enxergar detalhadamente. Hoje, olho para a minha brasilidade com paixão.
E como recebeu a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro?
Acho que, como todos os brasileiros, eu precisei me beliscar para acreditar. Foi muito especial, uma conquista coletiva. E foi importante para mostrar ao resto do mundo que nós produzimos arte da melhor qualidade. Aliás, torço para que esse reconhecimento leve o país a pensar em políticas públicas de fomento ao cinema e a outros setores. Já passou da hora de ampliarmos as fronteiras, sair da nossa bolha, parar de receber tanta coisa que vem de fora e começar a levar um pouco das nossas joias para o mundo — como tem feito, por exemplo, a Coreia do Sul, com o cinema e outras artes. Essa premiação é histórica, ajuda a nos posicionar como indústria e mostra que podemos dialogar com o mundo de igual para igual.