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“O ódio é uma tolice completa”, afirma Jorge Furtado

Com quarenta anos de carreira, cineasta lança filme sobre mulheres que se conheceram nos anos 1930, em São Paulo, e vai filmar nova comédia romântica

Por Melina Dalboni
16 Maio 2025, 06h00
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Jorge Furtado: “O cinema brasileiro está falando sobre nós” (Rodrigo Gorosito/Divulgação)
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O novo filme de Jorge Furtado, Virgínia e Adelaide, que acaba de chegar aos cinemas, partiu do que ele chama de ignorância. Em 2018, o roteirista e cineasta gaúcho, de 65 anos, conheceu a história de uma personagem real que pouca gente conhecia, fora dos meios acadêmicos, Virgínia Bicudo. “O filme partiu de minha total surpresa quando soube que a primeira psicanalista do Brasil era uma mulher negra nos anos 1930”, conta o diretor, que completou quatro décadas de carreira.

Rodado em apenas dez dias, com orçamento de 1,5 milhão de reais, o filme, codirigido pela cineasta Yasmin Thayná, mostra a potência da amizade entre duas mulheres que se conhecem em 1937, em São Paulo, quando Virgínia (Gabriela Correa) procura Adelaide Koch (Sophie Charlotte), uma médica e psicanalista judia alemã que se refugiara no Brasil, para fazer análise e entender o racismo sofrido na infância.

“Foi um encontro entre duas mulheres racializadas e perseguidas que produziu algo muito positivo”, diz Jorge, que relança nos cinemas, dia 29, as cópias restauradas digitalmente em 4K do premiado curta-metragem Ilha das Flores (1989) e do longa Saneamento Básico, o Filme (2007), estrelado por Fernanda Torres, dentro do projeto Sessão Vitrine Petrobras.

Além de se dedicar à estreia e à volta aos cinemas de suas obras, o cineasta se prepara para estar no set com Muito Prazer (nome provisório). Desta vez, ele escreveu uma comédia romântica sobre os algoritmos da pornografia, que será estrelada por Luisa Arraes e Daniel de Oliveira e começa a ser filmada no início de junho. Confira a seguir a entrevista a VEJA SP.

Embora se passe nos anos 1930, Virgínia e Adelaide escancara o impacto do Estado Novo e da ascensão do nazismo. Parece que estamos falando de hoje?

Estamos falando de 1937 e em alguns momentos parecia mesmo que estava falando do mundo atual, que tem líderes totalitários flertando com o fascismo. O ódio é uma doença contagiosa e uma tolice completa. O Bertrand Russell (filósofo britânico, 1872-1970) deixou de testamento uma frase: “O amor é sábio, o ódio é tolo”. O filme mistura imagens de arquivo e uma direção que por vezes remete ao jornalismo documental.

Qual o impacto do orçamento na estética?

Este filme custou cerca de 1,5 milhão de reais e foi rodado em dez dias. É praticamente um orçamento de documentário. O Jim Jarmusch (cineasta americano) diz que o orçamento é a estética. Podemos fazer filmes de qualquer orçamento desde que se paguem todos os profissionais. O cinema tem que ter todos os formatos de produção, dos pequenos aos maiores. Não dá pra viver só de filmes de baixo orçamento feitos em dez dias.

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Depois de escrever o roteiro, você convidou Yasmin Thayná, nascida em 1993 na Baixada Fluminense (RJ), para codirigir Virgínia e Adelaide. O que aprendeu nesta parceria?

Aprendi muito de muitas formas. A maneira como a Yasmin filma é a de jovens impetuosos, com câmera na mão, posicionamentos de lentes como nunca vi. Tem uma energia incrível no set. Mas o principal foi que ela trouxe alegria para o filme. Yasmin percebeu que Virgínia era uma mulher alegre, que ria, dançava, gostava de música. E me mostrou que as memórias de Adelaide não eram só atreladas ao nazismo. Mas que todas as memórias de Virgínia eram atreladas ao racismo, o que mudamos.

Com frequência, a crítica aponta o roteiro como um dos pontos fracos do cinema brasileiro. Afinal, faltam bons roteiristas ou falta investir mais nos roteiros?

Roteiristas bons temos muitos. Falta investimento na fase de roteiro. Falta ter mais tempo de trabalho, ter mais gente trabalhando, ter novos roteiristas e juntá-los com outros que tenham mais experiência. Muitas vezes, no Brasil, os roteiristas têm que trabalhar em mais de um lugar ao mesmo tempo. É uma pena porque o investimento no roteiro é muito menos caro que uma filmagem. Não dá para ir para um set com um roteiro que não está pronto. É um desperdício de tempo e dinheiro.

“A inteligência artificial pode ameaçar ou pode ajudar a profissão de roteirista, porque sempre se vai precisar de um humano para sentir alguma coisa”

O streaming é a principal ameaça ao cinema brasileiro hoje?

O streaming tem que ser taxado. As empresas estrangeiras que chegam aqui só para lucrar têm que contribuir com a produção brasileira. Mas o streaming não é uma ameaça, é um parceiro.

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O que achou de Trump anunciar que vai taxar em 100% as produções estrangeiras ou as americanas rodadas no exterior para “fortalecer a indústria americana”?

Amanhã, talvez, ele nem se lembre disso.

Você completou quarenta anos de cinema, já atravessou várias fases da indústria, do fim da Embrafilme à retomada do cinema nacional. Como enxerga o momento atual do cinema brasileiro?

Tivemos dois filmes que furaram bolhas. Ainda Estou Aqui e O Auto da Compadecida 2 tiveram grande sucesso de bilheteria e puderam mostrar ao público que o cinema brasileiro é relevante, faz sentido e está falando sobre nós. Ninguém é obrigado a ir ao cinema, a ler livro, a ir a exposição, então, nós temos que fazer com que as pessoas queiram ir. Um filme só existe quando é visto. O Dia do Cinema Brasileiro (19 de junho) é o dia da primeira filmagem da Baía da Guanabara de um filme que ninguém viu. Isso é simbólico. Nos outros países, o dia do cinema é o dia em que um filme foi exibido numa sala de exibição.

A indústria cinematográfica do mundo inteiro está atenta ao impacto da inteligência artificial nos filmes. Acredita que os roteiristas podem ser ameaçados por isso?

Eu acho divertidíssimo por enquanto, mas meio assustador também. Testo, experimento. Interessante que ela não consiga fazer humor, porque o humor é totalmente humano. Criar por enquanto ela não cria, só pega coisas que já existem e mistura. A IA pode ameaçar ou pode ajudar a profissão de roteirista, porque sempre se vai precisar de um humano para sentir alguma coisa. A obra artística de real valor vem do sentimento, e não do conhecimento. Como escreveu Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas: “A gente só sabe bem aquilo que não entende”.

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