O sucesso de Quarto de Despejo — Diário de Uma Favelada completou sessenta anos em 2020. O livro de estreia de Carolina Maria de Jesus, que narra sua trajetória como catadora de lixo, mãe solteira de três filhos e moradora da antiga favela do Canindé, na Zona Norte da capital, roda o mundo com tradução para treze idiomas e reverência incontestável. Em 2021, o nome da escritora volta aos holofotes. Sua vida e obra serão temas de uma exposição no Instituto Moreira Salles, programada para setembro.
Além disso, a Companhia das Letras lança uma reedição de Casa de Alvenaria, a sequência do primeiro livro da autora, em agosto. Existem, ainda, tratativas para a filmagem de uma adaptação cinematográfica de Quarto de Despejo, com produção de Globo Filmes, Raccord, Maria Produtora e Buda Filmes. Nos bastidores, porém, uma tormenta judicial entre os familiares de Carolina ameaça essas iniciativas.
Vítima de insuficiência respiratória, a autora morreu aos 62 anos, em 1977. Teve três filhos. O mais velho, João José de Jesus, não deixou herdeiros. José Carlos de Jesus, o do meio, faleceu em 2016 e deixou quatro filhas — Liliam, 48, Eliane, 47, Elisa, 45, e Adriana, 40. Elas se tornaram rivais da filha caçula (e a única viva) da autora, Vera Eunice de Jesus Lima, 67. Em março, as sobrinhas de Vera Eunice criaram uma conta no Instagram (@netascarolinadejesus), na qual acusam a tia de dificultar o acesso às negociações que envolvem direitos autorais da escritora.
As quatro se queixam de dificuldades financeiras. Adriana afirma que teve a água e a luz de casa cortadas, em São José dos Campos. Liliam faz faxinas, trabalha como garçonete e conta que apanha coisas no lixo, em Jaraguá do Sul, Santa Catarina. “A gente está na pandemia e tem contas para pagar. É um dinheiro que faz falta. É um direito nosso”, diz Eliane, moradora de Parelheiros. As netas tentam obter, na Justiça, os inventários do pai e de Carolina — os processos não foram feitos na época da morte da autora. Reclamam que, desde a morte do pai, editoras e instituições têm usado a obra de Carolina sem que recebam uma parte justa.
Segundo relatam, é Vera Eunice quem dá aval às produções. Entre elas, a mostra que o Instituto Moreira Salles prepara para setembro, chamada Carolina Maria de Jesus — Um Brasil para os Brasileiros. A exposição tem a curadoria do antropólogo Hélio Menezes e de Raquel Barreto, além de pesquisa da crítica literária Fernanda Miranda. Adriana, neta de Carolina, alega que ficou sabendo da mostra pela internet. A advogada das netas, Luana Romani, afirma que no primeiro contato com a produção não recebeu nenhuma proposta que contemplasse as netas, nem financeira, nem para participar do conselho artístico da exposição.
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“Mandei um e-mail para o advogado (do IMS) e eles não tinham interesse em deixar as meninas participarem. A exposição ainda está marcada, mas (se não houver um acordo) a gente vai tentar impedi-la judicialmente”, diz Luana. O IMS responde, em nota, que estava em contato com as herdeiras. Após o questionamento da Vejinha, Luana foi convidada para uma reunião on-line com o IMS. Segundo conta, o instituto ficou de mandar uma proposta. A exposição ocuparia o 8º e o 9º andar do IMS, na Avenida Paulista, com fotografias, documentos, periódicos e manuscritos, além de artistas convidados a falar sobre Carolina. Teria, ainda, uma raridade: o disco Quarto de Despejo, com músicas de Carolina, gravado por ela em 1961, que pertence ao Acervo José Ramos Tinhorão, sob a guarda do IMS.
Vera Eunice afirma que ainda não assinou nada com o centro cultural. Ela rebate as acusações de que seria uma tia que deixa as sobrinhas na mão. “O IMS sugeriu pagar mais para mim porque sou filha direta e falaria com o público. Ofereceram 60 000 reais, sendo 50 000 para mim e 10 000 para as netas. Falei: de jeito nenhum. Meio a meio. Ficará acordado 30 000 para cada lado”, afirma Vera, que também tem reunião marcada no IMS nesta semana. “Eu nem sabia dessa encrenca delas com o IMS”, diz. Vera explica que soube do entrevero em conversa com a equipe da Companhia das Letras, que também negociou direitos autorais da escritora.
Para agosto, a editora prepara os lançamentos de Casa de Alvenaria — Volume 1 e 2 (as duas edições em pré-venda por 39,90 e 59,90). O primeiro volume registra os meses em que Carolina, após deixar a favela, morou em Osasco, em 1960. As netas dizem que a Companhia das Letras é a única editora que está quite com elas. No entanto, reclamam de não terem voz nas decisões editoriais. “O conselho está lá: Vera Eunice, Conceição Evaristo e toda a banca. E a gente, fora”, diz Adriana. Vera Eunice — que é professora de língua portuguesa — escreveu a introdução dos volumes junto com Conceição Evaristo. “Fui chamada para o conselho, mas não abri a boca”, diz.
A adaptação cinematográfica de Quarto de Despejo não deve chegar às telas tão cedo, mas os planos esquentaram nos últimos meses. As quatro produtoras citadas compraram os direitos autorais junto à Editora Ática, que possui os contratos para a comercialização da obra. A Ática tinha colhido a assinatura dos herdeiros diretos, Vera Eunice e José Carlos, quando ele ainda era vivo.
As filhas de José Carlos, porém, alegam que também precisariam assinar a cessão, uma vez que o pai morreu antes dos acordos atuais de filmagem. Nos bastidores, fala-se que a adaptação vem sondando para o elenco nomes como Taís Araujo, Léa Garcia e Maria Gal — atriz e dona de uma das produtoras do longa. Procurada, Maria Gal afirma que pagou pelos direitos à Ática e que está “tudo certo para a realização do filme”. A Ática, em nota, completa: “Em razão do contrato firmado com a autora Carolina de Jesus, (a editora) pode negociar diretamente os direitos da obra para produção audiovisual, com independência dos herdeiros”.
Segundo a advogada das netas, a Ática e as produtoras Raccord e Maria Gal chegaram a propor o pagamento de 80 000 reais a elas em agosto do ano passado. Após alguns meses, teriam retirado a proposta e dito que a assinatura delas não seria mais necessária. As netas pedem à Ática um pagamento de 100 000 reais por direitos ligados a Quarto de Despejo. Vera Eunice recebeu sua parte dessas publicações.
A das sobrinhas, depende do inventário do pai. Também questionam a propriedade do sítio em Parelheiros, onde a autora morou com os filhos até falecer. Vera Eunice alega que comprou a parte do irmão quando ele era vivo. A advogada das netas declara que Vera nunca mostrou documentos que comprovem o negócio. Uma briga que, de certa forma, ainda ecoa os dramas sociais narrados por Carolina. “Para nós, que vivemos na miséria, é triste passar em uma livraria, ver algo de Carolina e pensar: ‘É minha história, é minha família”, diz Liliam.
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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de julho de 2021, edição nº 2746