Até mesmo em uma conversa via computador, é impossível passarem despercebidos o sorriso e brilho nos olhos de Ailton Graça, 59. Do outro lado da tela, o protagonista de Mussum — O Filmis (que terá exibição única na Mostra SP no dia 26 de outubro, na Cinemateca, antes de estrear comercialmente em 2 de novembro) fala com alegria sobre sua carreira e como tudo começou. O ator, que nasceu na região da Chácara Klabin, também relembra o marcante momento em que recebeu o prêmio de melhor ator no Festival de Gramado, no último mês de agosto, e afirma que ainda está em êxtase por ter interpretado o comediante.
Mussum (ou Antônio Carlos Bernardes Gomes) foi um dos artistas mais emblemáticos da TV. A que se deve sua popularidade?
É a construção do personagem. Essa construção responde uma série de questões para o povo brasileiro se sentir visto. Mussum tinha um apelo popular que raramente a gente vai ver. O Grande Otelo tinha uma popularidade gigante, mas ele tinha todo um requinte na interpretação. Dava para ver que ele estudou. Já o Mussum… A gente encontra pessoas assim no jogo do Corin- thians, no bar. Ele é gente como a gente.
As piadas racistas com Mussum em Os Trapalhões, assim como os rumores de que elas também aconteciam fora das telas, ficaram em evidência nos últimos anos. A escolha por não abordar isso no longa foi proposital?
Essa é a história do Antônio Carlos. Não é a história de Os Trapalhões. Acho que existem coisas que saem do contexto dentro do sistema de se narrar pautas pretas. Há equívocos que a gente precisa tratar. Por exemplo: diziam que o Mussum morreu de cirrose, sendo que, na verdade, ele tinha um coração grande. Existe uma política de invisibilizar o povo preto. Por isso foi tão importante contar a história dele com Silvio Guindane (diretor) e toda uma equipe preta com o foco de tratar nossos heróis em atos heroicos. O filme passou por esse zelo e, para mim, é um manifesto libertador de falar sobre Mussum sob o nosso ponto de vista.
O que pensa sobre a transformação do olhar para com o humor?
Esse é o momento de falarmos sobre Os Trapalhões. Não é o momento de excluí-los da pauta. Temos de colocar isso em evidência agora que temos a ferramenta da internet. A internet compartilhou coisas importantíssimas nessa construção social e humanitária, que propõem mais equidade e cuidado com todas as etnias. Precisamos criar uma referência diferente sobre como vamos lidar com aquele tipo de humor que se fazia antes. Eu mesmo estou num processo de aprendizado, porque o humor era outra coisa quando comecei. Piadas que lidam com dores precisam de um olhar diferenciado. O humor está sendo reformulado para criarmos um mundo melhor.
Com a vitória em Gramado, Mussum — O Filmis marca seu primeiro prêmio em um festival de cinema. Como define esse momento?
Na minha casa, tenho um santuário com várias Nossas Senhoras e meus orixás. Quando voltei do festival, coloquei o prêmio lá e a minha esposa disse: “Agora é o santo Kikito!”. Mas eu só queria mesmo era colocar em um lugar importante. Não sei lidar com isso ainda. É a primeira vez que eu sou “pretogonista” de um trabalho e eu também nunca tinha ido a Gramado. Estou em estado de êxtase e ficarei assim até o dia que o filme estrear. Espero que perdure por bastante tempo. Daqui para frente, só espero que sempre venha um novo personagem até mim. Toda vez que me perguntam qual foi o mais difícil da minha carreira, respondo que é “o próximo”.
“Só espero que sempre venha um novo personagem até mim. Toda vez que me perguntam qual foi o mais difícil da minha carreira, respondo que é o próximo”
Antes de se tornar ator, você foi feirante e camelô. Qual foi o ponto de partida para ingressar no teatro?
O teatro esteve na minha vida desde o colégio. Como artista periférico e do subúrbio, tudo tem a ver com sobrevivência. Eu tinha de quebrar a estatística. Um corpo negro, na margem dos grandes centros, que tinha a ideia de ser ator obviamente tinha de trabalhar na feira livre ou como servente de pedreiro. Trabalhava com o que fosse preciso para manter essa chama acesa. De alguma forma, essas experiências me transformaram em um ator popular, com características parecidas com as de Mussum. É um trunfo que guardo no meu bolso.
O Carnaval também é sua grande paixão. Como foi o início dessa história?
Minha família fazia cordão carnavalesco na Bahia. Minha bisavó era mãe de santo, parteira e foliã. E, quando ela chegou a São Paulo com o filho dela, meu avô João, a primeira coisa que fez foi procurar emprego e instrumentos para montar uma batucada. Era comum celebrarmos todos os fins de semana junto a uma roda de samba. Fui pegando o gosto ao longo da vida. No início, queria ser passista e, depois, virei mestre-sala da escola Independente do Jardim Míriam, que nem existe mais. Com o passar dos anos, passei pela Gaviões da Fiel, Tom Maior… E o mais legal dessa minha ligação é que eu só sou mangueirense por causa do Mussum. Ele dizia que no Rio tinha um “palácio do samba” por causa da escola e, então, comecei a ter a Mangueira como paixão.
Você é presidente da Lavapés, uma das escolas de samba mais antigas de São Paulo. Qual a diferença entre ser sambista e dirigente?
É uma tensão que você não está entendendo. Construir esse espetáculo, esse gigante espetáculo que vai para a avenida é de uma responsabilidade atroz. Mas eu amo esse universo maluco das escolas. É uma mistura dos nossos ritos com a nossa brasilidade. Uma forma de extravasar as dores e alegrias do ano anterior. Além disso, eu estou desenvolvendo um documentário sobre a Lavapés. Quero contar essa história.
São Paulo foi chamada de “túmulo do samba” por Vinicius de Moraes. Acha que essa fama ficou no passado?
Acho que, se o Vinícius estivesse aqui hoje, ele ia mudar essa frase e dizer: “Gente, aqui é o berço do samba”. O número de blocos que existe em São Paulo cresceu absurdamente. Muitas pessoas que saíam daqui para ir a outros estados no Carnaval agora ficam na cidade mesmo, diante das diversas opções de bloquinhos espalhados por aí.
Publicado em VEJA São Paulo de 6 de outubro de 2023, edição nº 2862.