“Lourenzo viu uma postagem minha no Instagram — provavelmente algo sobre militância transexual — e reagiu ao meu story. Era madrugada e, como sou uma mulher decidida, perguntei o que aquele gatinho estava fazendo on-line tão tarde. Pedi o seu número e ele disse que não gostava de ligação, mas acabou ficando cinco horas comigo no telefone.
Eu já tinha vivido relações com homens cisgêneros (pessoas que se identificam com o gênero designado no momento do nascimento) e estava um pouco cansada da experiência. O amor geralmente é negado a pessoas trans e achei interessante a possibilidade de um relacionamento transcentrado (quando ambos são trans).
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Eu morava em Aracaju, Sergipe, e o Lourenzo no Guarujá, na Baixada Santista. Depois de dois meses conversando, comprei uma passagem só de ida para Aracaju e enviei a ele para que viesse me visitar. Um dia antes da viagem, ele teve intoxicação alimentar e passou a noite no hospital, mas viajou mesmo assim, ainda tomando remédios.
Quando o vi no aeroporto, foi como uma cena de filme. Estava supernervosa. Nos beijamos pela primeira vez. O plano era o Lourenzo ficar um mês comigo, mas, na metade desse tempo, ele começou a ter sensações estranhas.
Vomitava logo depois das refeições e tinha dores de cabeça. Por ter tomado testosterona por três anos durante a transição hormonal, ele acreditava ser praticamente estéril. Entretanto, o teste de farmácia comprovou a gravidez.
O pai dele não aceitou a situação, e a pandemia só piorava. Achamos melhor ele ficar no Nordeste comigo durante o processo. A estada dele se estendeu por sete meses.
Fomos a cinco hospitais públicos para começar o pré-natal e em todos sofremos transfobia por parte dos funcionários. Éramos obrigados a usar nosso nome de batismo. Uma médica me disse que eu teria de ‘mostrar a vagina’ para provar que sou uma mulher.
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Lourenzo estava sangrando por duas semanas e, em uma maternidade, fizeram exame de toque e nos mandaram para casa, dizendo que com o ultrassom — marcado trinta dias depois — descobriríamos se o bebê estava vivo ou não. Ligamos para doze clínicas particulares e nenhuma nos aceitou. Quando eu dizia que precisava de exames para um homem trans grávido, achavam que era trote.
Descobrimos médicos em São Paulo especializados em atender a comunidade LGBTQIA+. Em paralelo, a Biônica Filmes, em Pinheiros, queria fazer um documentário sobre nossa história. Sentimos que teríamos mais apoio na capital paulista e nos mudamos para cá há um mês.
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Lourenzo fez o primeiro ultrassom aos oito meses de gestação na UBS Santa Cecília e começamos a gravação do documentário, intitulado Apolo, nome do deus grego que inspira artistas e poetas — somos um casal de cantores — e que será também o do nosso filho.
O nascimento está previsto para dezembro. Para Lourenzo, é um privilégio ser homem e ter a oportunidade de gestar o próprio filho. Eu comecei a tomar hormônios para fazer a lactação induzida e também amamentar Apolo. Eu o sinto mais agitado na barriga de Lourenzo quando converso com ele.
Quando pensamos que teríamos dias de paz, sofremos um atentado de um motorista de aplicativo. Pedimos o carro na volta de uma consulta e o homem perguntou quem estava gestante. Quando explicamos que era Lourenzo, ele se revoltou, disse que era impossível um homem engravidar. Começamos a discutir. Ele passou a gritar, nos ameaçou de agressão e saiu da rota. Descemos do carro e corremos até chegar em casa. Lourenzo passou mal e teve distensão na virilha. O motorista não aceitou a existência de transexuais. Nós sempre existimos, apenas fomos apagados da historiografia.”
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Publicado em VEJA São Paulo de 01 de dezembro de 2021, edição nº 2766