Com cinco filhos e dez netos, a psicanalista paulistana Raquel Strada Nosek, 75, já teria bagagem de sobra para falar sobre os desafios da maternidade, um assunto que envolve todas as mães, independentemente da geração.
Mas, além da experiência pessoal, as quatro décadas dedicadas à psicanálise, durante as quais passaram pelo seu divã inúmeras mães às voltas com as incertezas que costumam acompanhar esse papel, permitiram que ela observasse de perto o mosaico de sentimentos que, desde sempre, permeia a relação entre mãe e filhos.
E, por mais que faça questão de frisar que cada paciente é uma paciente, Raquel sustenta ideias bem claras sobre como a dinâmica familiar e as expectativas maternas vêm se transformando desde que abriu as portas de seu consultório no Itaim Bibi.
Casada há 52 anos com o também psicanalista Leopold Nosek, antes de se graduar na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Raquel foi bailarina do corpo de baile do Theatro Municipal (hoje conhecido como Balé da Cidade) na época de sua formação, no fim dos anos 60.
“Após o nascimento de minhas primeiras filhas, apesar de muito sofrimento, abandonei a dança para me dedicar integralmente a elas. Para mim, nada foi tão importante na vida como ser mãe”, afirma. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
O que mudou em você internamente assim que se tornou mãe?
Eu costumo dizer que mãe é uma mulher que ficou louca (risos). Para interagir com o bebê, é preciso se infantilizar. Você tem de entender a criança, e não se faz isso na área da consciência. A gente vai regredindo, entra em outra sintonia. Por mergulhar nessa outra frequência de forma tão intensa, uma experiência angustiante, é necessário um respiro, voltar para o mundo adulto, em prol da própria sobrevivência.
Nesses 45 anos de profissão, em que passaram por seu consultório muitas mulheres, quais as diferenças relacionadas à forma de encarar a maternidade entre as diferentes gerações?
Em termos de sentimento materno não muda quase nada. O amor de mãe é e sempre foi único. Por outro lado, a dinâmica do dia a dia é muito distinta. Na minha época a criação era mais solta. Literalmente. Eu colocava os cinco dentro do carro e nem cinto de segurança afivelava. Hoje o mundo é outro, muito mais difícil e competitivo. Veja que minha experiência é de classe média, é pouco provável que eu conheça a experiência das periferias. Observo como meus filhos se dedicam intensamente às crianças, estudando juntos, controlando horários. Isso eu acho que mudou bastante. Às vezes me pergunto como dei conta de criar cinco filhos. Mas a dinâmica era diferente.
A que você atribui essa mudança na forma de criar os filhos?
Meus filhos cresceram na ditadura militar, o que deixava a vida privada como eixo da existência. Para mim, na época ser mãe era sair da morte, da repressão, foi um grito de vida e liberdade, uma maravilha! O mundo mudou muito e a maternidade ocorre hoje em uma outra situação. As famílias hoje também são bem menores. Dispõem de menos recursos e é comum o filho único, o que faz com que as mães consigam gerir mais de perto o cotidiano das crianças. Óbvio que a gente se preocupava com a educação, como iam crescer, se estavam felizes, mas era diferente do que se vê hoje. Na minha época a preocupação era com a felicidade e a liberdade das crianças, hoje é em prepará-las para um mundo muito mais difícil.
Quais as principais angústias maternas que chegam a seu consultório atualmente?
Obviamente cada mãe é única, com sua própria história. Além das angústias da criação, aparecem as angústias das separações, quando chega a hora de o filho sair de casa. Isso é muito presente. Ao mesmo tempo que se deseja que o filho cresça, evolua, vá estudar em outra cidade até, existe uma dor quando isso finalmente ocorre. E outro motivo de preocupação é com a formação dos filhos, com o que vão alcançar na vida, com sua independência financeira. Isso porque a gente sabe que não basta mais fazer uma faculdade para se destacar no mercado de trabalho. É preciso seguir se aprimorando. Por isso, essa nova geração demora mais para sair da casa dos pais.
“Quando têm filhos, as mulheres tendem a se reaproximar da mãe. Há uma espécie de retorno ao colo materno. Para acolher a criança, elas precisam ser acolhidas”
E há algum comportamento em comum entre as pacientes que estão tendo filhos agora?
Não é algo novo, mas, quando têm filhos, as mulheres tendem a se reaproximar da mãe. Há uma espécie de retorno ao colo materno. E o interessante é que, por mais que se imagine que isso se dê por questões práticas, pela necessidade de ajuda com o bebê, há um motivo psicológico muito forte também: para dar conta de amparar o neném, a mãe também precisa de amparo. É como se o desamparo daquela criaturinha tão frágil fizesse emergir o desamparo materno. E, para acolher a criança, a mãe precisa ser acolhida por todos ao seu redor.
Com base em sua experiência pessoal e profissional, o que você diria a uma mulher que está prestes a se tornar mãe?
Eu faria um alerta sobre a questão da culpa. Como psicanalista, costumo dizer que na hora que nasce um filho nasce junto a culpa. Você se sente culpada por qualquer coisa, pelo que fez e pelo que não fez. Culpa faz parte do pacote maternidade, não tem jeito. E, na verdade, a gente faz o melhor que pode, sempre querendo acertar. E chega um momento em que, independentemente do quanto tentamos guiá-los em uma certa direção, os filhos são o que são. Alguns correspondem mais às nossas expectativas, outros menos, alguns surpreendem, simplesmente temos que aprender a lidar com isso. Quando somos mais jovens, queremos modificar a realidade, mas tem uma hora que é preciso abrir mão, aceitar.
Essa busca pela maternidade perfeita ainda gera muito sofrimento?
Sim. Mas não há um jeito certo de ser mãe. Cada uma faz o melhor que consegue, e isso é comum a todas as gerações. Quando somos mais jovens, queremos ser perfeitas e evitar os erros da geração anterior. Ao final a realidade se impõe e é um grande milagre ser mãe.
Publicado em VEJA São Paulo de 10 de maio de 2024, edição nº 2892