Mart’nália se aventura no pagode: “A minha função é divertir as pessoas”
A cantora carioca grava sucessos dos anos 90 em novo disco e esbanja sinceridade ao falar sobre a proximidade dos 60 anos e a liberdade do samba

Uma missão impossível: bater um papo com Mart’nália, 59, sem abrir um sorriso de orelha a orelha.
A cantora carioquíssima de alma leve e voz rouca conversou com a Vejinha sobre o seu disco mais recente, o delicioso Pagode da Mart’nália (2024), em que ela canta hinos do gênero que se popularizou nos anos 90, como Derê e Sem Abuso, dos grupos paulistanos Soweto e Art Popular, respectivamente.
Com participações de Caetano Veloso, Luísa Sonza e Martinho da Vila, seu pai, o álbum tem produção assinada por Marcia Alvarez, Luiz Otávio e Marcus Preto.
Aliás, na noite deste sábado (5), a sambista estará na capital paulista, no palco da Audio, puxando os melhores refrões do pagode — imperdível. Leia, a seguir, a conversa divertida com a cantora sobre o seu novo momento.
Quero começar perguntando sobre o Pagode da Mart’nália. Como nasceu esse projeto?
A ideia veio da Marcinha (Marcia Alvarez, sua empresária), em um sonho em que eu estava cantando pagode. Gosto de desafios e topei tentar. A princípio seria uma mistura, não só anos 90. Pensei em pegar pagodes inéditos, e ela falou: “Não, era daquele pessoal dos anos 90, você estava cantando e parecia feliz” (risos). Fui pescar essas músicas antigas, e, como são muitas, resolvemos fechar naquela década. Peguei um recorte mais alegre, porque o pagode geralmente tem uma carga emocional, de um sentimento muito sentido, que não é o meu caso. Tenho um pouco mais de leveza, mais Vila Isabel (bairro carioca).
Até hoje vejo uma confusão comum sobre o que é pagode e o que é samba, como se fossem gêneros diferentes. Qual a sua visão?
Como diz uma amiga baiana: “Quem souber morre” (risos). É aquela coisa, Zeca Pagodinho canta samba, o grupo “samba sei lá o quê” canta pagode. Então isso tudo se unificou. Hoje em dia a gente tem pagode sertanejo, samba sertanejo. Como diz Caetano: “Deixa o pagode romântico soar” (verso da música Quando o Galo Cantou). O próprio pagode abriu espaço pra galera que não se interessava pelo samba. Sei a diferença de um sambaenredo, um partido-alto, mas o samba e o pagode se misturaram muito. Assim como, antigamente, o funk tinha outro nome, veio o charme, o hip-hop, e funk agora é outra coisa. A arte é feita pra unir pessoas, movimentos, guetos. E isso é o bacana da nossa música. Meu outro padrinho, Djavan, sempre me aconselhou: “Canta o que você quiser — se começar presa, fica assim o resto da vida”.
E como vem sendo levar esse projeto diferente para os palcos?
Esse show está sendo uma surpresa boa, espero caminhar bastante com ele. Gosto quando sai todo mundo feliz pra caramba. A minha função é esta: divertir as pessoas. É pra cantar junto e se jogar, pagode foi feito pra isso. Muito mal me comparando, fiquei com saudade do Emílio Santiago, me senti um pouco ele, com as Aquarelas Brasileiras (série de discos com versões do cantor de grandes canções). Em alguns momentos até me senti fazendo uma homenagem a ele. Primeiro é esse desafio, por exemplo: “Eu te quero só pra mim” (refrão da música Coração Radiante), eu canto de um jeito e a galera de outro. É interessante, porque uns se assustam, e os meus fãs não estão acostumados a me ouvir cantar essas músicas. Parece que estou começando de novo, e estou muito feliz, me descobrindo. Pra mim, tudo vira samba mesmo, põe um pandeiro, um tamborim, junto com a minha influência pop americana, da black music. É isso que faço com toda música que canto: tento fazer do meu jeito, pra ficar bom na minha voz. E que não me violente, nunca.
No disco, você canta alguns sucessos de grupos paulistanos. Qual a sua relação profissional ou pessoal com SP?
Estou sempre em São Paulo, e morei na cidade quando ainda não tinha a minha carreira e fazia só alguns vocais em discos, dos 18 aos 21 anos. É uma rota de muita importância. Tem o Sesc — quem dera existisse no Rio de Janeiro, ainda não chegamos nesse patamar. É um exemplo de como chegar no povão. Sou uma cantora popular, uma hora estou nos United States e outra na caixa de sapato, tanto faz.
Você abriu 2025 com shows no Circo Voador. Quais os planos para os próximos meses?
Está sendo um ano maravilhoso. Primeiro que a Fernandinha (Fernanda Torres) ganhou o Globo de Ouro, começamos com o pé direito. O que segura a gente é a nossa cultura, o nosso povão. E, pra mim, teria um Circo Voador em cada cidade do Brasil, seria que nem o Sesc em São Paulo. Mas claro que tem outras coisas. A mulher (a ex-vice-presidente americana Kamala Harris) não ganhou nos Estados Unidos, não sei o que vai dar, o mundo mexeu de novo. Com pé atrás sempre, mas a felicidade está reinando, porque o pior já foi embora, 2025 é só o começo.
Em setembro, você faz 60 anos. O que pensa sobre essa nova fase?
Não penso sobre isso, não nasci assim. Mas acho interessante fazer 60 anos. Assim, tem a coluna, né? E a cerveja, que não dá pra tomar muito, ficar acordada mais tempo não dá tanto, já demora mais pra sair da cama, tem mais trabalho pra fazer, não pode ficar tanto à toa… Sou meio assim, subo no palco e gasto toda a energia. Vivo um dia de cada vez. Amanhã? Amanhã não sei. É hoje aqui, por enquanto.
Liberdade parece ser uma palavra importante para você. Tanto na música quanto na sua visão sobre a sexualidade, por exemplo, ser livre é importante?
Nasci no dia 7 de setembro, no Dia da Independência — não quero saber dos outros, minha camisa é verde e amarela e não tô nem aí pro resto (risos). A minha mãe era cantora, ela queria divulgar as músicas do meu pai, que era do Exército. Mas depois ela não quis seguir carreira porque queria essa liberdade. O samba é liberdade total, e meus exemplos eram desse mundo, Clara Nunes, Beth Carvalho, então como eu ia enxergar aquilo como um preconceito? Não tenho vivências pra dar exemplo. Tem gente que ganha dinheiro com isso, dá palestra. Eu nasci mesmo pra ficar à toa. Vim a passeio e fui esbarrando com coisas que foram me prendendo aqui. Gosto mesmo de falar de tamborim, de praia, de beijo na boca, de cerveja, de Carnaval. De vida boa é o que eu entendo. Prefiro também, inclusive, ouvir do que falar.
Publicado em VEJA São Paulo de 4 de abril de 2025, edição nº 2938