“Precisamos proteger nossos autores da inteligência artificial”, diz CEO da UBC
Para Marcelo Castello Branco, o uso da IA na música precisa ocorrer de maneira a reconhecer os direitos dos artistas, sob risco de haver uma “barbárie”

No início deste mês, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.338/2023, um inédito marco regulatório da inteligência artificial (IA) no Brasil.
Dentre as diferentes áreas impactadas por esse tipo de tecnologia, o setor da música é um dos que enfrentam desafios no respeito aos direitos autorais.
Uma das pessoas com posição de maior destaque nesse assunto no país é o carioca Marcelo Castello Branco, 64, CEO da União Brasileira de Compositores (UBC).
Com uma longa trajetória como executivo de gravadoras, como a Universal e a EMI, Marcelo também é o presidente do conselho administrativo da Confederação Internacional de Sociedades de Autores e Compositores (Cisac), a principal entidade global do segmento — e que publicou, neste mês, um estudo sobre o impacto da IA no mercado musical.
A preocupante previsão é de uma perda de 24% nas receitas dos autores até 2028. Sobre esse e outros temas, veja a entrevista a seguir.
O Prêmio UBC este ano aconteceu pela primeira vez em São Paulo e homenageou Rita Lee e Roberto de Carvalho. Qual o simbolismo dessa celebração?
Foi uma edição especial que a gente achou pertinente fazer em São Paulo, em razão da relevância da cidade na obra de Rita e Roberto. Não dá para pensar o rock brasileiro, nem parte da MPB, sem pensar em Rita e Roberto. Eles foram grandes precursores e tradutores do rock brasileiro. Mas também com letras que inauguraram uma maneira nova de dizer, uma certa ironia e irreverência, uma linguagem direta que foi muito bem recebida pelo público durante décadas e décadas e continua ecoando hoje. Foi um privilégio e uma alegria, mesmo que parcial, em função de Rita não estar mais presente.
Como aconteceu a sua transição de executivo de gravadoras para CEO da UBC?
Tive vários grandes mestres, um deles foi André Midani (importante produtor musical, morto em 2019). Ele me falou uma frase que transformei em mantra: “Perceba como a vida é mais generosa com quem se move”. A minha vida toda havia sido ligada à produção. Quando surgiu o convite da UBC, o que me atraía era o fato de ela ter uma característica internacional muito predominante, com acordos de reciprocidade com as maiores sociedades do mundo. Mas eu tinha consciência de que estava atravessando um rio, mas de uma correnteza muito bem-vinda. O mercado, com o advento do digital, se transformou de um mercado de posse em um de acesso. E hoje, maciçamente, em um segmento de direitos.
“O fato é que todo o treinamento da inteligência artificial está sendo feito com propriedade intelectual preexistente”
Existe uma visão de que a música hoje é de menor qualidade que a de antigamente. Qual a sua opinião?
Acho essa visão distorcida, equivocada. Não me rendo à nostalgia. Cada tempo tem as suas senhas e sinas. A produção hoje é mais horizontal, democrática, de poucos filtros, de convivência com algoritmos. Mais regionalizada e, ao mesmo tempo, global. Vejo muitos talentos, expressões que antes estavam encarceradas em modelos de negócios limitantes e elitistas. Vejo um Brasil escancarado, de muitas vertentes musicais, mais plural que outros países. E sempre digo: se tivéssemos a mesma capacidade de planejar que temos de improvisar, seríamos imbatíveis.
E como você enxerga a cena atual de criadores de música no Brasil?
Vejo com otimismo essa pluralidade. Há muito talento e perspectiva de grandes coisas. A nova música do Ceará, do Pará. A Bahia, sempre prodigiosa, com o BaianaSystem. O samba e o pagode voltando. A MPB se reinventando. O agro e a potência do sertanejo e a nova música urbana, com o trap. Estamos na véspera de grandes novas construções de carreiras, onde o off-line tem que validar o on-line: o ao vivo é o que define o artista e sua relação com um público.
A novidade do momento é o avanço da IA e o uso dela na música. Qual a sua visão sobre isso?
A música é um ativo muito vulnerável para disrupções, é a primeira barraca atingida na praia quando chega o tsunâmi. A gente passou por essa experiência diversas vezes, a mais crítica delas no advento da pirataria, primeiro física, depois digital. Mas agora tem uma diferença. Todas as grandes disrupções aconteceram nos formatos e nos canais de distribuição, com as eras do cassete, do vinil, do CD. A inteligência artificial é um território jamais navegado, porque tem uma mudança na criação. E o fato é que todo o treinamento da inteligência artificial está sendo feito com propriedade intelectual preexistente. Também na literatura, nas artes plásticas. Ou seja, se você vai treinar o seu equipamento e não pediu permissão aos criadores para utilizar as obras, essa discussão precisa estar na ordem do dia. Se não houver reconhecimento de direitos, é barbárie civilizatória.
Qual o estágio dessa discussão no Brasil?
Temos um texto de lei, aprovado pelo Senado e que depois vai para a Câmara. Estamos muito envolvidos com isso. O que a gente quer é que exista transparência — e discutir o mecanismo de remuneração dos nossos criadores. No mundo ideal, é muito melhor o bom senso do que a judicialização. Mas também estaremos prontos para o que der e vier, porque o nosso propósito é a proteção dos autores. Imagino que a gente deva ter um marco legal no Brasil nos próximos meses. Mas é importante dizer que não somos contra a inovação, reconhecemos as imensas vantagens e acelerações que vão ser causadas pela inteligência artificial. Estamos prontos para um processo de adaptação.
Qual a sua previsão sobre o tamanho do impacto desse “tsunâmi” que a IA representa?
É bom a gente lembrar que a IA já está presente na criação de alguma maneira, nos estúdios de gravação, nos mecanismos de distribuição, na identificação de repertório. Gosto de pensar que a IA não será uma substituta, mas sim uma maravilhosa assistente. Ela vai ser uma ferramenta fundamental no processo criativo, tanto para o audiovisual como para a criação musical e vários outros processos. É cedo ainda para dizer ou tentar prever isso. Existem dois erros que acontecem na véspera de grandes transformações. A primeira é superestimar. A segunda, subestimar. Acho que a gente tem que ter cuidado, porque a repercussão e os desdobramentos podem ser incalculáveis, muito difíceis de ser manejados.
Publicado em VEJA São Paulo de 20 de dezembro de 2024, edição nº 2924