Cinderela é a personagem de um dos contos de fadas mais populares do mundo e uma das princesas mais queridas da Disney. Não há quem não conheça a história da jovem filha de um comerciante rico que, após perder o pai, passou a sofrer humilhações da madrasta e de suas duas filhas invejosas. E ter uma madrasta má não é exclusividade da Cinderela — a Branca de Neve também carrega o peso de ter uma que a maltrata. E é justamente esse estigma de “madrasta má”, que vai muito além do ciúme e de pequenos desentendimentos que podem acontecer em qualquer família, que o Somos Madrastas (@somos.madrastas) quer quebrar. O perfil criado pela educadora parental Mariana Camardelli, de 35 anos, reúne quase 20 000 pessoas e tem como objetivo desconstruir o estereótipo.
“Desde que me tornei madrasta passei a ouvir coisas como ‘Ah, mas você é uma boadrasta’, como se ser madrasta fosse uma coisa ruim”, diz Mariana, ressaltando que o prefixo “ma” vem de mater e não de maldade. “Passei a me aprofundar no assunto e decidi criar um canal para reunir pessoas com as mesmas questões que eu tinha. Temos de esquecer aquele estereótipo de madrasta da Disney. Madrasta não é palavrão”, defende Mariana, dizendo que ela mesma é enteada — tem madrasta e padrasto desde pequena — e mesmo assim nunca imaginou que um dia seria uma delas. “A sociedade nos prepara para viver o sonho do príncipe encantado. Quando me tornei madrasta, foi muito difícil, porque eu não encontrava meu lugar na sociedade”, afirma.
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A identificação dos seguidores no Somos Madrastas é tão grande que Mariana chega a receber uma média de cinquenta mensagens por semana de pessoas que querem dividir os anseios e as angústias desse lugar na família. Se ela abre uma caixa de perguntas no perfil, por exemplo, pode ter 400 questionamentos em 24 horas. Os stories que chamam a atenção para o tema alcançam milhares de visualizações. “Vou à exaustão, mas eu respondo a todas as perguntas. As pessoas querem e precisam ser acolhidas”, afirma Mariana, que viu nesse mercado uma oportunidade de migrar de profissão — tem eventos e até lojinha temática, mas parte do conteúdo é gratuita —, já que a empresa de eventos que ela tinha perdeu sentido com a pandemia.
Entre os milhares de seguidoras do perfil está a atriz Mariana Xavier, madrasta dos gêmeos Diana e Danilo, que inclusive já participou de uma live por lá para debater o tema. Outra seguidora é a empresária e modelo Carolina Dias Leite, de 25 anos, esposa do ex-jogador Kaká. Mãe de Esther, de 6 meses, e madrasta da Isabella, de 10 anos, e de Luca, de 12, Carol diz que o Somos Madrastas lhe ensinou muito a respeito da autoridade que as madrastas devem ter e as regras para manter uma convivência saudável com as crianças em casa.
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“As minhas maiores angústias são sobre criação, por ter uma filha que é criada no convívio dos filhos dele do primeiro casamento. Tenho na minha cabeça os meus próprios conflitos sobre esse tema”, conta ela, que acrescenta: “Conheci o Somos Madrastas por um acaso incrível da internet. Vi um post que falava sobre o nome madrasta ter um significado maravilhoso, mas soar pejorativo na sociedade, e comecei a seguir”, conta Carol.
A bióloga Thelma Alves, de 41 anos, é outra seguidora que diz que encontrou no perfil o apoio e acolhimento de que precisava para “aprender” a lidar com a situação. Ela não tem filhos biológicos, tornou-se madrasta de três meninos (Pedro, de 11 anos, e os gêmeos Gabriel e Davi, de 7) e a sua única experiência na maternidade era cuidar dos sobrinhos.
“Minha maior dificuldade ainda é saber até onde posso ir, pois tenho medo de ser invasiva demais. Não exerço papel de mãe com meus sobrinhos, mas minha irmã me dá total autonomia para cuidar deles e chamar atenção. Mas, com os meninos, qual é o meu limite? As crianças não são minhas”, questiona Thelma, que reconhece que ainda não se sente 100% confortável com a situação. “É por isso que eu odeio a Disney desde que me tornei madrasta. As histórias só nos passam a imagem da madrasta bruxa, que maltrata, que é ruim, que esconde crianças no porão. É pesado carregar esse estigma”, explica.
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A atriz Letícia Tomazella, de 35 anos, é madrasta de dois meninos — Leon, de 16 anos, e Yuri, de 11 anos — e também encontrou dificuldades para estabelecer o seu espaço como madrasta em uma “família que já estava construída”, como ela mesma frisou. “Eu precisava tomar o protagonismo de uma família que a partir daquele momento seria a minha. Não dava para ser coadjuvante o tempo todo”, explica. A atriz conta que quando se casou os meninos já tinham uma rotina preestabelecida. “Ninguém entende muito bem o papel da mulher que chega para fazer parte da família a partir daquele momento. Surgem perguntas como: Devo educar? Ajudar na lição da escola? Devo agir como uma babá? O que eu sou?”, diz.
Diante de tantas perguntas sem respostas prontas, Letícia foi buscar ajuda na literatura. Depois, resolveu ir atrás de referências nas redes sociais — e aí encontrou o Somos Madrastas. Sempre que possível participa das lives, das rodas de conversa, dos encontros, das palestras. “Ali eu encontrei o meu nicho, a minha turma.” As demandas do grupo a inspiraram a criar o podcast Maternizando, com a amiga Júlia Rodrigues Mota — já são 23 episódios disponíveis para falar de “madrastidade”.
A dona de casa Rebecka Lima Hahn, de 41 anos, é mãe da Rebeckinha, de 3 anos, e madrasta de quatro: Marcelo, de 11; Natasha, de 18; Christian, de 22; e Alexia, de 24. Há nove anos com o atual marido, ela conta que entrou na família sem a perspectiva de ser mãe e com medo de ser rejeitada pelas crianças. “Os quatro me receberam muito bem, mas eu me sentia numa corda bamba. Eu não era a mãe deles e por isso me autocobrava porque não podia falhar com eles e queria ser a madrasta perfeita”, lembra.
Rebecka conta que por anos viveu os seus medos e conflitos de ser madrasta sem expor para os enteados e para o marido e diz que hoje briga para defender os irmãos da filha. “Com o tempo, fortalecemos os laços e vivemos em total sintonia. Eles me davam presente de Dia das Mães mesmo antes de a Rebeckinha nascer. Eu me acabava de chorar. Fui picada pela madrastice e amo todos eles”, finalizou.
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Publicado em VEJA São Paulo de 12 de maio de 2021, edição nº 2737