“Nos primeiros dias na prisão, Ângela chorava muito. Nós começamos a cuidar dela e, certa vez, propus que fizesse um desenho. Com o papel no chão da cela e canetas, criamos uma obra juntas”, lembra a advogada e ex-presa política Rita Sipahi, 85. O desenho a qual ela se refere é Carta a Quatro Mãos para Camila (1971/1972) (abaixo), que fez com Ângela Maria Rocha enquanto ambas estavam detidas no Presídio Tiradentes, na capital. Ele é um dos trabalhos da exposição Imagem-Testemunho, que traz 41 obras, entre desenhos, pinturas, gravuras e colagens, de presos políticos da ditadura militar, a partir de quinta (27), no Centro MariAntonia.
O evento comemora os trinta anos do centro cultural, que foi sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP) até 1993, e cenário de importantes manifestações contra o regime. Para a mostra, a instituição faz uma parceria com a Pinacoteca, para a qual Rita doou no ano passado as mais de 430 obras do acervo do jornalista Alípio Freire, seu marido e também ex-preso político, morto em 2021 de Covid-19. “Desde que foi detido, em 1969, Alípio começou a guardar quadros dos presos, além de seus próprios, já que também era artista plástico. Mas foi um trabalho de uma vida inteira, pois ele continuou recebendo e se dedicou a preservar as obras depois que saiu da cadeia”, conta Priscila Arantes, curadora da mostra.
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Desde a década de 80, a coleção já integrou outras exposições na capital, além de livros e catálogos. Nesta versão, além do recorte do acervo, o MariAntonia também recebe documentos da época e sete depoimentos inéditos em vídeo de quem viveu o período.
A exemplo do desenho de Rita e Ângela, a maioria das obras foi feita com materiais levados por familiares em visitas ou com o que havia à disposição nas próprias celas. É o caso de RPT-P1-X3 (1971), tela de Alípio feita com pedaços de madeira, um interruptor velho, cabides, escova de dente e um espelho, que era usado para a comunicação entre as celas. “Alguns já eram artistas antes, mas outros começaram a produzir dentro da cadeia”, diz Priscila. “A arte era uma forma de tratar nossas dores. Esses trabalhos são testemunhos de um momento que não pode ser esquecido”, conclui Rita.
Publicado em VEJA São Paulo de 26 de abril de 2023, edição nº 2838