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“Somos educadas para acreditar que existe hierarquia de gênero”

Fayda Belo, advogada conhecida por explicar o "juridiquês" de forma didática, fala sobre religião e como construir um país menos machista

Por Guilherme Queiroz
8 mar 2024, 06h00
Imagem mostra advogada sorrindo em frente à estante de livros
A advogada Fayda Belo (Divulgação/Divulgação)
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Sempre entre aeroportos, a vida da Annalise Keating brasileira, apelido de Fayda Belo, 42, em referência à jurista protagonizada pela atriz Viola Davis na série How To Get Away With Murder, é de gastação de gogó. A advogada criminalista divide seu tempo entre tribunais, palestras e vídeos para as redes sociais. Explodiu na pandemia e acumula quase 2 milhões de seguidores no TikTok, onde explica didaticamente as consequências legais da violência contra a mulher e grupos LGBTQIA+, assuntos que domina e pelos quais advoga. No ano passado, Fayda, que é capixaba, lançou seu primeiro livro em São Paulo, Justiça para Todas, obra em que expõe de forma clara e simples os direitos adquiridos pelas mulheres no país.

Você iniciou na carreira jurídica aos 25 anos. Quem era a Fayda antes de ser uma advogada?

Fayda era uma jovem preta, que morava em um bairro pobre e sempre ouviu da mãe que a única chance de virar a chave da vida era pela educação. Por outro lado, fui mãe jovem (teve o primeiro filho aos 16 anos) e isso colocou um freio nos meus estudos. Uma professora, um anjo, me incentivou a voltar a estudar, fiz o Enem e consegui uma nota razoável para dar início ao meu sonho com o Prouni. Sempre quis ser advogada de grupos minoritários.

O histórico de abuso influenciou sua escolha da carreira?

Minha primeira relação foi abusiva, de onde vieram os meus filhos, e isso fez com que eu refletisse sobre o quão injusto é um homem ter o controle sobre a nossa vida. Eu não podia ir à escola, ter amigos, abrir a boca. Comecei a pensar sobre o quanto isso era grave e a perceber que precisava arrumar uma maneira de as mulheres entenderem mais sobre os direitos delas. Vejo que vivi aquilo por ausência de informação.

Antes de estourar nas redes sociais, como era sua carreira?

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Quando começamos um escritório, digo que abrimos uma clínica geral, até o momento em que você consegue trabalhar com o que realmente gosta. Depois de dois anos migrei para a área que me interessa, que é lidar com gênero e raça. Passo para uma advocacia que ajuda a Justiça a enxergar crimes contra grupos minoritários como prioridade. Vejo mulheres que matam o marido após serem vítimas de abuso por muitos anos. Nesses casos, a Justiça é rápida para prendê-las. Agora, quando é o contrário, não é da mesma maneira. Só escutamos que um homem foi preso quando a mulher já está morta. Quero justamente evitar que essas mulheres morram.

O que diria para as meninas e mulheres da geração Z que também passam pelos problemas de violência que você enfrentou?

Quando converso com as jovens falo muito sobre como o amor não é uma relação de posse. Se o namorado dita o que você pode ou não fazer, ele não respeita sua individualidade e isso é um alerta. Caso esse namoro vire uma relação mais séria, você pode ser uma iminente vítima de violência doméstica. Para as adultas, lembro do nosso histórico, que fomos educadas a acreditar que existe uma hierarquia entre gêneros dentro de uma relação íntima, levadas a aceitar que o homem é áspero, grosso e que temos que relevar essas ações pelo bem dos nossos filhos. A mulher sábia edifica a sua casa, como diz a Bíblia. A Europa trouxe o modelo do homem branco hétero cis como líder, a mulher branca hétero cis como adereço e o padre, para lembrar que essa mulher tinha que ser submissa e sábia, para edificar o lar. Essa ideia foi colocada na nossa mente desde nossas avós e mães, e hoje precisamos colocar um freio.

“A geração Z é o Brasil de amanhã. Quem são os homens e mulheres que queremos para este país? Precisamos municiá-los de informações corretas”

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O perfil dos seus clientes mudou depois do sucesso das redes sociais?

Tenho clientes que são humildes e pessoas que trabalham em altos cargos em órgãos públicos. A violência contra a mulher não é exclusivamente da Maria que está no morro. Obviamente a mulher preta é a mais abusada, estuprada e morta. Mas a mulher branca que é deputada, juíza, também sofre em casa e, às vezes, a gente pensa que não. Porque não é sobre grau de instrução, é sobre relação de poder.

Sua rede social com o maior número de seguidores é o TikTok, que tem força entre os mais jovens. Como se comunicar com esse público?

Leveza, clareza e firmeza. Essa é a tríade. A gente precisa lembrar que a geração Z é o Brasil de amanhã. Quem são os homens e mulheres que queremos para este país? Precisamos municiá-los de informação correta para que eles sejam melhores.

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No seu livro você se propõe a explicar os direitos adquiridos pelas mulheres de forma didática. A legislação atual é suficiente?

Ela é 90% suficiente. O problema é quem recebe a denúncia, quem julga e quem aplica a lei. Uma mulher é morta a cada seis horas no Brasil. O artigo 121 do Código Penal diz que a pena para homicídio qualificado pode chegar a trinta anos. Muito se fala em reprimir, mas pouco se fala em instrução. Precisamos unir punição com uma educação antimachista. Não quero excluir da mesa os homens, quero incluí-los para que eles entendam que essa violência também é ruim para eles, para a sociedade como um todo.

O que você achou da condenação do jogador Daniel Alves?

Achei a condenação baixa em pena (quatro anos e meio de reclusão), mas de um efeito pedagógico. A juíza disse que, ainda que no início da noite tenha havido um consentimento, logo depois houve um não, então ocorreu uma violência. Antes havia a ideia de que se a mulher topa um drinque e depois diz que foi vítima de estupro é mentira. Ela dá o sim para um drinque, não para qualquer outra coisa. Por isso, creio que foi extremamente relevante.

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As mulheres de hoje são mais bem informadas sobre os direitos adquiridos?

Sim. Mas ainda temos uma forte influência religiosa que faz com que as mulheres aceitem violências. É preciso lembrar do papel das instituições religiosas. Não adianta elas terem consciência se usam a fé para alimentar a violência. Um estudo da consultoria McKinsey aponta que a maioria das vítimas de violência doméstica são evangélicas e não relatam o crime. Elas são orientadas a crer que o valor da família está acima de qualquer coisa. Precisamos que as instituições religiosas enxerguem essas mulheres como as vítimas que são.

Publicado em VEJA São Paulo de 8 de março de 2024, edição nº 2883

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