“Eu trabalho pela música e por causa da música”, afirma Tom Zé
Reconhecido como cidadão paulistano, o músico baiano fala sobre educação, sua relação com São Paulo e a volta aos palcos após problema de saúde

“Tudo aconteceu na minha vida com a curiosidade antes de tudo.” Um sujeito curioso. É um jeito de tentar explicar Tom Zé, caso ele não tivesse advertido a gente em suas tantas canções que isso não vai adiantar. A verdade é que o jovem garoto nascido em Irará, na Bahia, logo cedo se percebeu um estudioso, encantado pela nossa língua e pelo país. E, com a sua arte, confundiu tantos de nós para explicar o nosso Brasil: “A língua sempre foi uma coisa que me moveu”.
Prestes a completar 89 anos, está recebendo o título de cidadão paulistano, neste sábado (6), por sua enorme contribuição à cultura brasileira. Depois de um período de reabilitação de saúde, se prepara para alguns shows, compõe muito e estuda sem parar. Entrevistar Tom Zé é diferente. Ele fornece materiais, junta arquivos, organiza textos importantes e recebe com alegria e disposição para um papo que nunca é linear e sempre conta com o auxílio de sua companheira há tantos anos, Neusa Martins — que, ao seu lado, ajuda a conduzir a história.
Fomos muito bem recebidos em sua casa em São Paulo para uma tarde de conversa e fotografias. Se toda entrevista começa com uma pergunta, com Tom Zé não é assim, é ele que começa. Com a palavra, este artista enorme:
Olha, a primeira coisa que eu quero dizer é que nós somos filhos de uma coisa que aconteceu em Bahia graças ao Edgard Santos (1894-1962; o primeiro reitor da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, e fundador da Escola de Música da instituição). Eu, Caetano, Gil, nós estávamos naquela universidade sem saber que aquilo era uma coisa que não tinha no mundo: a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, com direção do Koellreutter (1915-2005; compositor e professor alemão, radicado no Brasil).
Você tem o costume de citar seus professores, sublinhando a importância da educação.
Sim. Tem os professores e outra coisa também: quando criança, por uma intuição, eu fiz de minha infância uma universidade de línguas. Na loja do meu pai a gente trabalhava com a invasão árabe na Europa, que levou para lá os moçárabes, que se davam muito bem com os lavradores. Eu ouvia o povo da roça falando e prestava atenção. Outra língua que me fez curioso foi a dos jovens universitários que iam à casa de meu avô. Quando dava 9 horas da noite, eu era abraçado pela barriga e me botavam no quarto. Nunca fui dormir, ficava mesmo é passando as palavras que eu ouvia, para ver se eram o que eu pensava. Virei um estudante universitário com 8 anos de idade, com uma paixão por aprender que ninguém pode imaginar o porquê, mas nasci com isso.
E como foi o período na Escola de Música em Salvador, após deixar Irará?
Quando cheguei em Salvador, eu era um zero à esquerda. Meus colegas eram sábios, tinham estudado no interior, e um dia Ernst Widmer (1927-1990; compositor e pianista suíço que foi professor da UFBA) disse que eu tinha que fazer vestibular. Pensei: “Como vou fazer isso?”. Eu tive um professor que não ensinava música harmonizada, ele ensinava a harmonizar, e eu estudava apaixonadamente aquilo — então eu passei, em primeiro lugar. Acho que por causa da loucura que fiz na prova.
E como foi a vinda para São Paulo? O que sentiu quando chegou aqui?
Vim com Caetano Veloso para fazer uma peça: Arena Canta Bahia. Caetano morava na Avenida São Luís, e o fundo da casa dava para um cinema. Um dia entrei pra ver São Paulo Sociedade Anônima (longa de 1965), do Luiz Sergio Person. Esse filme me ensinou como fazer música sobre São Paulo.
E foram tantas canções…
O meu primeiro disco é de 1968, todas as músicas são sobre São Paulo. Quando eu ia no centro da cidade, as pessoas me confundiam com aquele compositor do Nordeste, o Raul Seixas, e me pediam autógrafos. Às vezes eu até assinava “Raul Seixas” e tudo bem.
E agora você está recebendo o título de cidadão paulistano. Como é?
Tudo isso só chegou até mim por causa dessas coisas todas que estou lhe contando. Toda a vida, a luta, o estudo, a tentativa de organizar o aprendizado em quadros. Sou um homem metódico, sei a coisa toda que fiz. Não sei se todo mundo sabe de tudo que fiz.
Acho que sim. Você está ganhando pela contribuição inestimável à cultura brasileira.
Ah é? Bom, mas teve toda uma luta no caminho, e a Europa confirmou isso. Porque foi quando eu comecei a ir para lá que os jornais do Brasil começaram a escrever sobre mim.
Teve esse tempo com menos reconhecimento…
Sim, mas nesse tempo sem ser reconhecido eu estava estudando, lutando. Eu não parava.
E sabemos da importância de David Byrne para a sua volta à cena. Na abertura do livro do Pietro Scaramuzzo, Tom Zé, o Último Tropicalista, Byrne escreve que, quando ouviu o disco Estudando o Samba, de 1976, toda a concepção dele da história da MPB mudou.
Ele foi muito importante. Veja você que coisa incrível, um tabaréu da roça fazendo isso. E com o quê? Com o que a roça ensinou. É isso que eu quero dizer quando digo que eu aprendi com o povo da roça.
Você passou por um momento difícil de saúde recentemente (após uma queda em casa), ficou afastado dos palcos e voltou. Como está?
Voltei, mas não é muito constante o palco a ponto de eu estar direto lá. O palco pra mim é uma grande alegria, porque lá acontecem coisas que só Deus sabe. Eu me preparo, é claro, e o conjunto que toca comigo faz umas malandragens que só eu faço. E tem o Daniel Maia, que é superimportante nas minhas coisas, ele dirige a banda e me ajuda a organizar.
A sua obra foi muito construída no encanto pela língua, com uma curiosidade indomável. Como você coloca isso no seu trabalho?
Eu trabalho pela música e por causa da música. Depois, o público acaba reagindo a favor porque se interessa.
Publicado em VEJA São Paulo de 5 de setembro de 2025, edição nº 2969