Andar de lá para cá com uma caixa de ferramentas, transportar frágeis obras em pesados estojos de madeira, instalar telas numa exposição e pendurar quadros na parede da casa de colecionadores. A figura de um montador é indispensável em qualquer galeria ou museu. Durante quatro anos, Flávio Cerqueira desempenhou essa função na renomada Galeria Casa Triângulo, nos Jardins.
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Na atual mostra em cartaz no lugar, porém, outra pessoa está encarregada desse trabalho braçal. Cerqueira virou autor e estrela da exposição. Sua segunda individual no local, Se Precisar, Conto Outra Vez reúne até terça (14) seis esculturas de bronze com figuras que são a marca de sua produção: crianças de tamanho real em diferentes situações. Algumas brincam com água, outras picham um muro ou estão soterradas por montanhas de livros.
Vindo de uma família de classe média-baixa de Guarulhos, o artista investe bastante na crítica social. Um de seus temas prediletos é o preconceito racial. A estátua Amnésia, por exemplo, mostra um menino negro despejando uma lata de tinta branca sobre si. “O Brasil encarou 400 anos de escravidão e, depois disso, passa por um processo de branqueamento da população”, entende. O artista tem a pretensão de reescrever a história do país por meio de seus personagens. Esse desejo fica especialmente claro em O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, na qual procura chamar atenção para a situação do povo indígena.
O talento para a escultura surgiu aos 17 anos, em 2000, quando começou a criar bruxas e duendes de massinha para vender aos colegas de escola. No ano seguinte, ingressou na Faculdade Paulista de Artes para estudar educação artística, período em que adotou o barro como matéria-prima de sua produção. A ideia de aderir ao bronze surgiu no mesmo ano, depois de visitar uma exposição do francês Auguste Rodin na Pinacoteca. “Essa foi uma das minhas primeiras idas a um museu. Fiquei fascinado”, relembra.
Em 2006, então atuando como vendedor de uma loja de material elétrico no Brás — onde ganhava 380 reais por mês —, Cerqueira foi convidado para trabalhar como montador na Galeria Casa Triângulo. Ali, teve o primeiro contato com a arte contemporânea. Para estudar por conta própria, pegava emprestados livros e revistas a respeito do tema. E, discretamente, produzia suas esculturas às segundas-feiras, dia de folga do emprego. “Durante quatro anos, ele não contou a ninguém sobre sua vocação”, afirma o diretor do espaço, Ricardo Trevisan. Em 2010, ele seria o primeiro comprador das obras de Cerqueira, por 2 000 reais — hoje elas chegam a custar até 80 000 reais.
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A visibilidade crescente nos anos seguintes o levaria a montar sua primeira individual, Ensimesmados, em 2013. Hoje, o artista figura em acervos de instituições como Pinacoteca, MAC-USP, Museu Afro Brasil e Itamaraty, e em coleções particulares de nomes como o banqueiro Alfredo Setúbal e o advogado Sérgio Carvalho. A atual exposição teve dez obras vendidas. Outros de seus personagens foram adquiridos por colecionadores da Suíça e da Dinamarca.
Cada uma das estátuas demora até três meses para ficar pronta. As peças nascem em um ateliê na Barra Funda. O artista começa fazendo uma imagem de barro e a cobre com uma camada de silicone. Essa estrutura serve para criar um molde de gesso da figura. O último passo consiste em recheá-lo com cerca de 30 quilos de bronze fundido a 300 graus. A finalização é realizada dentro de um pequeno galpão industrial na cidade de Piracicaba, no interior. Assim surge mais um de seus meninos, que ganham vida quase à maneira de Pinóquio, o lendário boneco criado pelo italiano Carlo Collodi. “É uma matéria-prima mais complicada com que lidar, mas meu objetivo é perpetuar meu trabalho”, afirma Cerqueira.