Daniela Mercury: “O Carnaval é o grande palco da cidadania”
A cantora, que sai pela primeira vez de Salvador em meio aos dias principais de festa, fala sobre os 40 anos do axé e sua participação na folia paulistana

Daniela Mercury é sinônimo de Carnaval desde 1983, quando puxou seu primeiro trio elétrico em Salvador.
A rainha do axé nunca passou os dias principais de folia longe das avenidas soteropolitanas — mas, neste ano, ela troca (por um momento) a capital baiana pela paulista, participando do Bloco do TikTok e Agrada Gregos, neste sábado (1º), no Parque Ibirapuera, a partir das 13h.
No dia 9, volta ainda a São Paulo para encerrar a maratona de festa com seu bloco Pipoca da Rainha, na Rua da Consolação.
Foi perto dali que, em 1992, a cantora fez um show histórico, no vão do Masp, reunindo cerca de 20 000 pessoas e escrevendo um capítulo importante na história do axé, gênero musical que completa quarenta anos.
Sobre São Paulo, Bahia e Carnaval, confira o papo a seguir.
Como nasceu a ideia de vir a São Paulo em meio à festa em Salvador?
Amo São Paulo, e sonhava muito em fazer a cidade ficar colorida e cheia de gente na rua. E o sonho virou realidade, né? Tenho um apartamento, morei um tempo e amo São Paulo, estou aí cinquenta, sessenta vezes por ano. Antes de 2016 (quando estreou seu trio no pré-Carnaval paulistano), já tinha tido reuniões com a SPTuris para fazer um circuito carnavalesco no centro. Queria contribuir para esse Carnaval ocupar as grandes avenidas. Um sonho oswaldiano (em referência ao escritor paulistano Oswald de Andrade). Fiquei muito ligada ao centenário da Semana de 22, porque tem muito a ver com tropicalismo e com axé. Digo sempre a Caetano e Gil que o axé é a encarnação do sonho tropicalista: cultura popular virando música pop brasileira. E o fato de o axé ter se tornado tão grande foi a partir também do meu show no Masp, em 1992. Há quase dez anos desfilei no aniversário da cidade, e desde então nunca mais larguei São Paulo.
“Estamos em um momento muito delicado, com uma mudança de política nas redes sociais que abre espaço para o discurso de ódio”
Qual a sua expectativa para a folia neste ano?
É maravilhoso fazer agora o Parque Ibirapuera com um grupo paulistano, no coração de São Paulo, um lugar muito emblemático, que é a praia da cidade. O Carnaval é um espaço de trabalho para as artes, com muita diversidade — vejo gente puxando trio elétrico em homenagem à Rita Lee, a turma paulistana faz de tudo um pouco. Sem dúvida o Carnaval de São Paulo está se tornando importantíssimo, além das escolas de samba, que são uma cultura muito importante. Eu adoro isso, estou animadíssima e acho um momento espetacular para poder fazer uma segunda data na cidade.
Em 2025, o axé completa quarenta anos. Como você enxerga a renovação do gênero atualmente?
A turma está fazendo um repertório muito interessante, misturando também novas tendências. Vejo uma Aila Menezes renovando o axé através do pagode de uma forma muito inteligente. Raquel Reis, que faz uma música romântica, que mistura arrocha. Melly, Majur, Xênia França, Luedji Luna, a maioria delas mais puxada para a MPB. Neste ano, o trio elétrico está completando 75 anos, e estou comemorando os quarenta anos também do Bloco Crocodilo aqui em Salvador. São muitos marcos que demonstram o tempo em que se constrói uma tradição de Carnaval de rua, o que estimula o nascimento de muitos artistas novos.
Você morou em São Paulo por quanto tempo e em qual bairro?
Por três anos e meio, em um apartamento no Panamby, porque queria ver a Represa de Guarapiranga — eu queria ver o mar (risos). Eu conseguia ver o skyline da cidade, porque baiano precisa ver o horizonte. Fiz o apartamento com o chão todo de madeira de demolição e cheio de azulejos azuis para parecer colonial. Fiz uma “Bahiazinha” em São Paulo para eu curtir. E perto do Parque Burle Marx, porque aqui em Salvador a gente está acostumado a ter mato e mar. Fui para ficar. O apartamento ainda é meu, mas eu vou e volto. De vez em quando, cogito voltar para São Paulo. Com o Carnaval crescendo, daqui a pouco estou morando aí de novo.
O bloco Agrada Gregos traz a temática LGBTQIA+. Como representante dessa bandeira, como é fazer parte dessa celebração no Carnaval?
São Paulo é um centro importantíssimo de luta por direitos LGBTQIA+. Estamos em um momento muito delicado, com uma mudança de política nas redes sociais que abre espaço para o discurso de ódio. Sem dúvida o Carnaval é uma das formas de se aproximar da população, criar afeto e envolver a cidade nessas lutas. Para as pessoas entenderem que, quando um de nós perde direitos, todos saem prejudicados. É a forma de celebrar a cultura LGBTQIA+ e desmistificála, porque nós somos pessoas como quaisquer outras. A gente precisa lutar politicamente e usar essas siglas para dizer que somos iguais. E, quando falamos de pessoas trans, que sofrem tanta discriminação, temos que ter amor, respeito e acolhimento para dar oportunidade de elas serem felizes.
O que o Carnaval representa para você?
O Carnaval é o grande palco da cidadania, o grande sonho de igualdade. Neste ano, estamos trazendo esperança, força e união, porque teremos um ano de luta pela democracia e afirmação dos nossos direitos. As mulheres ainda estão sem as políticas públicas necessárias de proteção. A gente precisa de muita coisa, e é com propósito que a gente vai à rua também. Se conseguirmos curar a tristeza e trazer esperança, força e energia, vamos adiante.
Daniela, não querendo adiantar seu aniversário, mas, em julho, você faz 60 anos…
Não adiante não (risos). Estou em um momento de muita plenitude. E, ao mesmo tempo, de virada, para ser mais jovem, no sentido de ter mais coragem para fazer renovações no meu trabalho artístico. Me debruço muito sobre a pesquisa, e estou louca para aprender tudo sobre a IA (inteligência artificial). É muito importante o conhecimento das gerações mais antigas, porque nem tudo está escrito. Muito da minha história e dos quarenta anos do axé não está na internet. E, se os dados são importantes hoje, quem tem mais a oferecer são os mais velhos. Estamos vendo quanto precisamos ensinar com Ainda Estou Aqui concorrendo ao Oscar — é a lembrança do que passamos na ditadura. É importante mostrar isso para os jovens. A gente vai se educar para lidar com esse mundo digital, esse excesso de informações, porque tudo é para o bem e para o mal. Acho fascinante, mas bem desafiador.
Publicado em VEJA São Paulo de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933