Em 1917, após cinco anos de obras, uma festança marcou a inauguração da primeira vila operária da capital, a Maria Zélia, localizada no Belém. O espaço com arquitetura do tipo europeu enchia os olhos dos privilegiados trabalhadores que passaram a residir no local, que tinha estrutura de minicidade, incluindo capela, creche, armazém, boticário, restaurante e coreto. Quase um século depois, o espaço ainda desperta interesse na capital. Depois de cruzar uma cancela instalada na entrada para controlar o fluxo dos cerca de 600 moradores, o visitante dá de cara com um cenário ao mesmo tempo encantador e melancólico. Parte das charmosas edificações está praticamente abandonada, sem cuidados.
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Com temporada até 15 de novembro, o espetáculo de dança Sob o Meu, o Nosso Peso chama atenção para o problema (confira o serviço completo aqui). A apresentação é encenada no próprio local, em meio aos escombros. Ela se desenrola dentro da Escola das Meninas, quase sem teto ou mesmo paredes. Árvores adentram as janelas. Em frente, em estado ainda mais precário, a Escola dos Meninos, com estrutura idêntica de dez salas de aula, está prestes a desabar. A coreógrafa paulistana Zélia Monteiro estrela o solo. Trata-se da bisneta do empresário Jorge Street e da mulher, Zélia, criadores da vila que abrigou funcionários da fábrica vizinha de mesmo dono, a tecelagem Companhia Nacional de Tecidos da Juta, onde hoje funciona a Goodyear. O nome do espaço residencial é uma homenagem à filha do casal, Maria Zélia, que faleceu ainda na adolescência, em 1916, por causa da tuberculose. “Precisava resgatar a memória de algo que era motivo de tanto orgulho”, diz a coreógrafa, que também tem projeto de catalogar e digitalizar o acervo de fotos antigas da família.
Na vida real, o enredo da decadência começou em 1924. Com apuros financeiros, Street vendeu a vila e a fábrica à família Scarpa. Após dificuldades com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, o clã repassou-as para os Guinle. Nos anos 30, os imóveis foram confiscados por causa de débitos com o governo e passaram para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriais, o antigo INSS. Enquanto as casas foram compradas pelos moradores na década de 60, os abandonados prédios de uso comum, onde funcionavam, entre outros, boticário, armazém e sapateiro, continuam como propriedade do INSS. Os administradores do órgão iniciaram o processo para alienação dos imóveis, pois consideram inviável transformá-los em agências.
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Muitas residências sofreram descaracterização, uma vez que o Condephaat tombou todo o perímetro somente em 1992. Há ainda moradores que, apesar da lei, mudam a fachada ou constroem andares adicionais. O Condephaat diz ter realizado vistorias no local e emitido notificações aos proprietários. Em uma próxima visita, sem data, se persistirem as irregularidades, o aviso pode se transformar em multa. “Falta eficiência do poder público para zelar por nosso patrimônio histórico”, critica Douglas Nascimento, responsávelpelo site São Paulo Antiga. Em janeiro, ele pretende liderar passeios instrutivos pela vila.
Edelcio Pereira Pinto, o “seu” Dedé, que mora ali desde que nasceu, há 65 anos, atua como uma espécie de síndico. “Hoje, estou zelando por ruínas”, lamenta. Ele sempre apostou na revitalização do local, mas está perdendo as esperanças. Dedé faz parte da Associação Cultural Vila Maria Zélia, responsável por iniciativas que visam a arrecadar dinheiro para restaurações. Desde 2004, o coletivo teatral Grupo XIX fez de um dos edifícios sua sede e vem conseguindo trazer mais pessoas para conhecer o pedaço. Ajudam no orçamento festas temáticas e a locação do espaço para filmagens — O Corintiano (1966), estrelado por Mazzaropi, foi rodado ali, assim como um recente videoclipe da cantora Anitta. “Tenho a sorte de viver no paraíso, aqui é um cantinho do céu”,orgulha-se Dedé.
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