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Bienal e SP-Arte Rotas Brasileiras reúnem mais de 400 artistas na cidade

Mostras movimentam o circuito artístico com obras que abordam racismo, gênero e povos originários

Por Humberto Abdo
1 set 2023, 01h00
Quatro pessoas aparecem lado a lado, duas à esquerda estão à frente de um murinho que conduz uma rampa, as duas outras apoiadas nele atrás. À frente, um homem e mulher negros, ele com camisa branca e calça cinza, ela com vestido longo e oversized preto e chapéu preto. Atrás, a mulher tem cabelos negros cacheados e volumosos e veste camiseta branca com jaqueta arroxeada. Ele, um senhor grisalho, veste camisa branca.
Curadoria coletiva: Hélio Menezes, Grada Kilomba, Diane Lima e Manuel Borja-Villel, no pavilhão do Ibirapuera. (Leo Martins/Veja SP)
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Pela primeira vez na história da Bienal de Arte de São Paulo, o vão central do pavilhão do Ibirapuera ficará tampado. Essa é uma das transformações na 35ª edição, cujo tema, “coreografias do impossível”, espera desafiar as hierarquias da arte e do próprio espaço expositivo.

“A ideia é que o público inverta o sentido habitual da visitação. O 3º andar, por exemplo, é climatizado e geralmente é lá que ficam as obras mais históricas. As mudanças no trajeto vão causar essas rupturas em agrupamentos por núcleo ou cronologia”, explica Hélio Menezes, um dos quatro curadores responsáveis por escolher os 121 nomes confirmados para a temporada.

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Artistas que lidam com violências, desigualdades e perda de liberdade fazem parte dessa seleção, que contempla obras com temas raciais, de gênero e de indivíduos marginalizados — não à toa, cerca de 80% deles são pessoas não brancas, segundo a organização, e boa parte está fora do circuito artístico presente nos Estados Unidos e na Europa.

“É a Bienal mais importante da América Latina e uma das mais importantes do mundo. Vim várias vezes, sempre para ver e comprar obras, além de me atualizar sobre os artistas brasileiros”, comenta Jorge Pérez, bilionário da construção civil nos Estados Unidos e colecionador de arte em visita a São Paulo, acompanhado de um grupo de conselheiros do museu Reina Sofia (do qual ele faz parte), em Madri.

“A cidade vai receber diretores, curadores e colecionadores de museus como o MOMA e o TATE por causa do evento. Nosso grupo vai aproveitar para visitar galerias e se encontrar com artistas em São Paulo”, afirma o empresário, dono de uma coleção de mais de 6 000 obras que inclui nomes como Di Cavalcanti e Cândido Portinari.

Na semana anterior à Bienal, a SP-Arte também movimenta a programação cultural da capital até domingo (3). Com 300 artistas de todas as regiões do Brasil, trata-se da segunda edição da mostra Rotas Brasileiras. “Esse é um momento essencial, pois coloca em evidência artistas e estados fora do eixo centro-sul”, avalia a fundadora e diretora Fernanda Feitosa. “É uma feira com a proposta de colocar a diversidade da arte brasileira em foco, por meio de projetos curados pelas galerias. Acaba sendo uma leitura do panorama da arte nacional.”

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BIENAL: Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, Ibirapuera (entrada pelo portão 3). A partir de quarta (6). Ter., qua., sex. e dom., 10h/19h. Qui. e sáb., 10h/21h. Grátis. Até 10/12. bienal.org.br

SP-ARTE: Arca. Avenida Manuel Bandeira, 360, Vila Leopoldina. Sex. (1º) e sáb. (2), 12h/19h. Dom. (3), 11h/18h. R$ 70,00. sp-arte.com

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PAULISTAS NA BIENAL

Entre coletivos e artistas nacionais e estrangeiros, 121 nomes participam da Bienal e oito deles são de São Paulo; com teor ativista e forte presença de temas raciais e LGBTQIA+, confira alguns destaques

Mulher careca negra sorri em frente a letreiro que diz
Malu Avelar, criadora do projeto Sauna Lésbica. (Leo Martins/Veja SP)
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Sauna Lésbica

Imagine se existisse uma sauna lésbica: essa é a provocação de Malu Avelar, fundadora do coletivo paulista que ocupa o subsolo do pavilhão. Nascida em Sabará, Minas Gerais, a artista e dançarina “radicada” em Santos criou o grupo em 2019 e convidou várias mulheres para integrar a nova edição.

“Trabalhei por muitos anos com Flip Couto na mesma companhia de dança e ouvia suas experiências de sauna. Um dia eu disse que gostaria de ir a uma e ele: ‘Não, você não pode’”, relembra. “Fiquei com esse empecilho na cabeça, que abriu um debate imenso.”

Um bar em Valongo serviu de espaço para a primeira versão, uma instalação adornada com letreiro neon (trazido à Bienal) e muito vapor — não é, ela ressalta, um comparativo com as saunas gays masculinas. Por lá, visitantes devem encontrar textos, imagens e reflexões, mas a criadora prefere não revelar muito mais que isso. “A sauna é algo coletivo, feito para se relacionar com outras pessoas e sempre tem um mistério envolvido.”

Foto em preto e branco exibe grupo de pessoas em zona rural.
Registro do quilombo Cafundó nos anos 1970. (CEDAE/Universidade Estadual de Campinas/Divulgação)

Quilombo Cafundó

Fotografias da década de 1970 fazem parte da composição do quilombo Cafundó, instalado em Salto de Pirapora, interior de São Paulo. “Na época, chamou a atenção de um pesquisador o fato de mantermos um dialeto africano que veio com nossos ancestrais. Talvez seja o único no Brasil”, acredita Regina Aparecida Pereira, uma das líderes do local.

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Com imagens cedidas pela Unicamp, são registros da comunidade, dos lugares e da tradicional festa da Santa Cruz organizada em uma capela. “Meu contato por lá começou em 2003, quando morava em Campinas. Conheci uma local chamada Cida e, anos depois, quando tive a oportunidade de visitar, ela já havia falecido. Mas conheci o irmão dela e acabamos nos casando.”

Senhora de cabelos curtos posa encostada em parede com fotografias, veste colar vermelho e vestido azul-escuro. Usa óculos de grau.
Rosa Gauditano. (Leo Martins/Veja SP)

Rosa Gauditano

Dois meses de visitas ao circuito lésbico paulistano nos anos 1970: esse foi o tempo que Rosa Gauditano levou para fotografar as frequentadoras do Ferro’s Bar e da boate Dinossauros, ambos na região da República. “Eu nunca tinha trabalhado como freelancer quando me pediram esse material. Morava na Frei Caneca e fui a pé me apresentar e explicar a proposta”, relembra.

O trabalho nunca chegou a ser publicado, mas na Bienal ganhou dois ambientes, um deles todo espelhado, para exibir 31 fotos ampliadas. “Elas sofriam uma repressão danada na época, era uma coisa muito fechada. E eu, que sempre tive namorado, pela primeira vez fiquei observando aquela realidade para entender como funcionava o mundo e a vida delas”, conta.

“Meu trabalho principal é com povos indígenas. Quando chego a uma aldeia, só converso e nem pego a máquina por alguns dias. Isso até as pessoas me aceitarem. Depois você fica meio transparente e nem ligam mais pra você. É daí que saem as fotos mais legais.”

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Aquarela exibe mulher em tom amarelo entrelaçada com raízes nos pés e segurando plantas nas duas mãos. Usa uma coroa de folhas.
Mangue, 2022 (aquarela, grafite sobre tela). Por Rosana Paulino. (Isabella Matheus/Divulgação)

Rosana Paulino

“Ganhei uma sala bem grande e generosa”, delicia-se Rosana Paulino. Após participar da última Bienal de Veneza, a artista visual assina a continuação da série Senhora das Plantas com vários “trípticos” (peças divididas em três partes) que fazem referência às árvores do mangue. Desta vez, os painéis terão até 5 metros de altura.

“Assim como as raízes que se entrelaçam, o próprio ambiente do mangue tem muitos simbolismos por ser berçário de várias espécies, mas também o local onde elas terminam. É ao mesmo tempo seco e úmido, início e fim”, reflete. “E essa adaptabilidade é algo comum na comunidade negra.”

Moradora de Pirituba, sua trajetória começou pelo contato com a natureza. “Durante boa parte da minha vida pensei que seria bióloga. E minha mãe era uma pedagoga nata, deixava brincar com argila o dia inteiro, modelar no barro, deixar secar e depois pintar… Em anos de universidade, não tive uma aula de arte africana, que dirá arte da periferia. Então passei a procurar minhas famílias e origens.”

SP-ARTE ROTAS BRASILEIRAS

Mais de 300 artistas ocupam o galpão da Arca na segunda edição da mostra, que reúne produções de todo o Brasil e convida galerias a apresentarem diferentes perspectivas da arte nacional

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Dois homens brancos posam lado a lado apoiados em coluna branca. Ambos vestem calças pretas, o da esquerda com suéter cinza e o da direita cardigã claro.
Ian Duarte e Allann Seabra. (Rômulo Fialdini/Divulgação)

Galeria Verve

Em comemoração dos dez anos da galeria instalada no Edifício Louvre, na República, os sócios Ian Duarte e Allan Seabra conduzem uma série de novidades, como uma sala de projetos prevista para ser inaugurada neste mês e um espaço expositivo temporário em Paris, que vai funcionar durante a mostra Art Basel, em outubro.

Na SP-Arte, a dupla reúne obras de cinco artistas que abordam várias perspectivas do tema “família”. “Para além dos laços sanguíneos, famílias no sentido de comunidades e vivências”, resume Ian.

São fotos, esculturas, vídeos e telas de nomes como o paulistano Moisés Patrício e a baiana Shai Andrade, cuja série Oráculo da Memória reúne fotoperformances construídas a partir de cartas de tarô que representam várias mulheres da sua árvore genealógica. “Sou casado com meu sócio e a ideia de família está presente na nossa atuação. Entendemos nossa galeria como uma grande família também”, completa Ian.

Placa de trânsito exibe silhueta de capivara em fundo rosa e borda verde.
Choque Cultural: obras de Alê Jordão farão parte de instalação com Ricardo Cardim. (João Liberato/Divulgação)

Choque Cultural

Especializado em esculturas de neon, o paulistano Alê Jordão assina a instalação Terra e Luz em parceria com o botânico Ricardo Cardim. Com uma foto antiga e ampliada do Rio Pinheiros, a dupla mistura plantas da Mata Atlântica com luzes e placas em referência à vida nas metrópoles. “É um diálogo entre o passado e o futuro de São Paulo, que há um século era um grande pântano até sua floresta e natureza terem sido apagadas”, traduz Baixo Ribeiro, fundador da Choque Cultural, que convidou a dupla.

“Cardim traz os elementos desse passado enquanto Jordão mostra o oposto, com a cidade superocupada, sinalizada e vigiada.” A silhueta da capivara no centro de uma placa faz parte dessa combinação. “É um animal urbano, na USP dá para encontrar muitas e São Paulo já foi uma cidade de bichos. Alguns ficaram e estão recolonizando seus espaços nesse ecossistema… Assim como a capivara.”

Quadro com estilo de grafite exibe menino de boné segurando barquinho com pessoas. Ele está sentado num pedaço de areia envolto pelo mar, à noite.
Obra de Fabiano Senk. (José Eduardo Ribeiro Brazuna/Divulgação)

Casa Jacarepaguá

Estreante no evento, a galeria do Butantã exibe uma mostra individual do pintor Fabiano Senk, conhecido por obras de rua e composições com elementos da região onde nasceu, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. “A série de quinze obras foi produzida especialmente para nosso estande, que terá as paredes pintadas com uma tinta que leva terra do próprio Vale”, conta o diretor José Brazuna.

Em telas com até 1 metro de altura, todas retratam a vida no interior com estilo surrealista e paletas de cores “sonhadoras”, na definição do artista, incluindo azuis, amarelos e rosas. “Com personagens locais e artesanato brasileiro, mantém a aparência de street art.”

Pintura exibe mulher negra com roupa branca e verde. O fundo é laranja e à frente dela existem riscos amarronzados.
Xica, de William Maia. Obra fará parte de mostra do grupo Sertão Negro na 35ª Bienal. (Gabriela Chaves/Divulgação)

Sertão Negro

No projeto Aterramento, oito artistas da periferia de Goiânia apresentam criações feitas no ateliê do grupo Sertão Negro, composto de 26 membros e criado por Dalton Paula. “Nunca fui a São Paulo e estou emocionada com a estreia. Não somos uma galeria, mas fizemos tudo o que uma galeria deve fazer para finalizar essa montagem”, comemora Xica, uma das artistas.

Relações, crenças e experiências vividas na região Centro-Oeste são o mote das obras, entre gravuras, instalações e aquarelas (como a tela Xica, de William Maia, na imagem acima). “Um deles, Lía, é um homem trans que vai trabalhar com a satirização dos objetos sacros da Igreja Católica. Com um confessionário, no lugar onde se ajoelha, terá um falo gigantesco”, revela.

“No meu caso, há seis anos construo corações de tecido em xilogravuras e bordados. Dentro deles, coloco sete ervas, algodão e óleos essenciais. No terreiro de umbanda, são consagrados e, de objeto ritualístico, passam a ter esse espaço como obra de arte.”

Quadro exibe homem negro com camiseta de time e shorts levando criança nas costas.
Obra do carioca Maxwell Alexandre. (Thiago Barros/Divulgação)

Casa SP-Arte

Paralelo à mostra, o carioca Maxwell Alexandre assina uma exposição individual na Casa SP-Arte, nos Jardins. Novo Poder: Passabilidade, Miss Brasil reúne mais de vinte obras inéditas feitas para essa ocasião. Em pinturas a óleo, algumas com 2 metros de altura, o artista explora a presença da comunidade preta em “templos consagrados da arte contemporânea”, como galerias, museus, centros culturais e fundações.

“A série é um estudo e mapeamento para que mais pessoas pretas possam se infiltrar, não só como espectadores ou objetos das obras, mas como agentes em posições de poder: curadores, artistas, colecionadores, diretores, financiadores, galeristas”, afirma. Além das telas, ele cobriu toda a casa por dentro com papel pardo e criou uma instalação batizada de Galeria 1.

Alameda Min. Rocha Azevedo, 1052, Jardins, 3077-2880. Seg. a sex., 11h/19h. Sáb., 11h/15h. Grátis.

Publicado em VEJA São Paulo de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857

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