Nasci em São José do Campos e vim para São Paulo tentar a vida de modelo. Lá, acordava de manhã e desfilava sozinha no quintal de casa imaginando ser uma angel da Victoria’s Secret. Sempre soube que era uma mulher transexual, mas naquela cidade era impossível ser eu mesma. Não tinha apoio da família. Tentei fingir que era um homem gay, mas não deu certo. Estava infeliz, presa em um corpo e em um nome que não eram meus. Uma fantasia sufocante.
No país que mais mata travestis do mundo, eu tinha medo. Minhas referências eram das trans que estavam presas nas favelas, que sofrem tanto e acabam nas drogas, uma forma de sair da realidade.
Primeiro aprendi a lidar com o racismo e amar minha cor. Depois, a me amar como mulher. Estar bem resolvida foi importante antes de conhecer meu namorado, Leo, 47. Se não me amasse primeiro, quem iria? Em 2019, eu o vi pela primeira vez no evento Manicure Show no Esponja, centro cultural no Largo do Arouche, organizado pela manicure e artista plástica trans Ana Matheus. O Leo, amigo da anfitriã, foi convidado para exibir uma instalação de arte no espaço, e eu fui chamada para fazer uma performance.
No dia da festa, aproximamo-nos por meio de amigos em comum e não parávamos de trocar olhares. Ele começou a me seguir no Instagram e responder meus stories. Até que um dia ele me chamou para jantar no Bar Pavão, em Santa Cecília.
Apesar de ser um homem branco e cisgênero, é engajado nas pautas LGBTQIA+ e na importância dos trabalhos das travestis, além de ser superinteligente. É difícil encontrar alguém assim, que leve você para jantar, porque nós somos frequentemente objetificadas. Já tive experiências frustrantes de homens cuja única intenção era me levar para a cama. Tinha parado de procurar por um relacionamento sério. E quando você para, é que alguém legal aparece.
Logo depois passei na seleção do reality show do canal E!, Born to Fashion, programa de competição entre mulheres trans que querem emplacar a carreira de modelo. Fiquei confinada por um mês para gravar. Comentava do Leo para as outras meninas da casa. Sentia saudade dele.
Assim que saí, marcamos outro jantar e passamos a nos ver todos os fins de semana. Estávamos muito envolvidos, perguntei o que ele queria. Ele respondeu que queria ficar comigo. Decidimos ter uma relação monogâmica. Pouco tempo depois fomos morar juntos e está sendo maravilhoso. Somos grudados, inclusive na pandemia, mas cada um respeita o espaço do outro. Hoje sei que ele me ama quanto eu o amo, e eu tenho a paz de estar em um namoro que não me traga conflitos.
Além de artista, Leo é curador e escritor. Ele escreveu o livro A História Universal do After, sobre festas de música eletrônica. Durante o processo de pesquisa, encontrou pessoas que defendem diferentes tipos de política, e acabou se desconstruindo de fobias, incluindo transfobia. Ele entende seus privilégios como homem branco e isso foi importante antes de se relacionar com uma travesti preta.
Encontrei-me sozinha quando comecei a transição de gênero. É como dar passos para trás na carreira profissional. As portas se fecham e você precisa correr atrás três vezes mais do que você quer. Antes do programa, trabalhava por conta própria. Com novas oportunidades, fiz meu primeiro SPFW e fui contratada pela Agência Profana, aumentando minha visibilidade como modelo trans.
Sei o que as pessoas podem pensar do meu relacionamento. Quando fico para baixo com comentários maldosos, o Leo me coloca para se cima, lembra-me que sou linda, uma mulher incrível.
As pessoas precisam se aprofundar mais sobre o que é ser transexual e entender que ser travesti não é ir para prostituição ou marginalidade. Que não são bichos, mas pessoas comuns, capazes e com diversos talentos.
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Publicado em VEJA São Paulo de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723