Do Glicério para a Copa: conheça a história da jornalista Ana Thaís Matos
Ela, que cresceu no Centro e é filha de empregada doméstica, será a primeira mulher a comentar o torneio na TV aberta no Brasil
“Que alívio, você não me perguntou se eu já sofri preconceito” foi a primeira frase que a jornalista Ana Thaís Matos disse após o término da entrevista.
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A Vejinha aproveitou uma brecha antes de uma coletiva de imprensa sobre a Copa do Catar, que começa em 20 de novembro, para conversar com a paulistana que será a primeira mulher da história da televisão aberta brasileira a comentar uma Copa do Mundo masculina. “Não existe uma outra Ana fazendo o que eu faço hoje. Então eu tenho de assumir que não sou mais uma garota, eu sou uma mulher de 37 anos e trago muitas outras junto comigo.”
Nascida no Jardim da Saúde, na Zona Sul, foi morar ainda bebê, após a separação dos pais, na Baixada do Glicério, no Centro. “A gente morou em várias casas e pensões em vias dali, como a Rua dos Estudantes e a da Glória. É um lugar pelo qual tenho muito carinho, apesar de ser barra-pesada. Não tenho mais amigos de lá, porque a criminalidade levou muitos deles”, conta Ana.
Antes de nascer, ela já convivia no ambiente futebolístico: a matriarca, dona Francisca, empregada doméstica e mãe de seis — cinco mulheres e um homem —, vendia bandeiras no Estádio do Pacaembu com a penúltima filha ainda na barriga.
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A paixão pelo futebol foi florescer mesmo nos terrões da periferia de Itanhaém, litoral paulista, cidade para a qual a família se mudou em 1993. Foi no convívio com os irmãos — a mãe trabalhava em São Paulo e voltava nos fins de semana — que Ana encontrou o esporte. “O meu irmão foi uma referência muito forte na minha vida, porque, por ser militar, ele sempre foi um cara esportista e bem organizado. Com medo de que eu não tivesse um futuro, desde muito cedo ele me levou para praticar esporte”, relembra.
Boleira federada, esboçou tentativas de seguir carreira como jogadora, mas as dificuldades financeiras e a idade foram empecilhos. Desiludida no litoral, voltou para São Paulo após o fim da Copa de 2002, com 17 anos. “Eu sou do tipo de pessoa que divide a vida em Copas do Mundo. E parece que as Copas foram me conduzindo para chegar até aqui. Mesmo quando não tinha ideia de que seria jornalista, eu estava consumindo elas. Os meus comentários são sempre baseados não só nos meus estudos, mas na minha experiência como espectadora.”
Após cinco anos ralando na capital paulista para trabalhar e estudar — passou por uma empresa de motoboys, uma loja de decoração e outra de roupa e por um escritório de arquitetura —, entrou com bolsa do Prouni no curso de jornalismo da PUC-SP.
Desde o primeiro contato com o jornalismo esportivo, o machismo se fez presente. “Toda mulher em redação cria uma casca. Eu convivi, desde o primeiro estágio, com todas as piadas, o preconceito, as panelas e a visão negativa sobre as mulheres que vi em todas as outras redações em que trabalhei. E sinto que não vou acompanhar a mudança — eu faço parte dela, mas acho que não vou gozar do benefício de modificar o ambiente. Tomara que esteja errada.”
Vivendo no Rio de Janeiro desde 2019, a jornalista conta que conseguiu se adaptar quando encontrou sua maneira de ser paulistana no meio carioca: ou seja, rodar a cidade e curtir o samba. “Eu vou às escolas de samba, estou sempre enfiada em periferia, nas comunidades. Gosto de viver essa vida menos glamorosa — é a minha realidade”, diz Ana, que passou também a voltar para a cidade natal toda semana para participar do programa Encontro — é a chance de ver o namorado, Rafael Falanga, presidente da escola de samba Mocidade Unida da Mooca.
Em menos de dois meses, Ana estará embarcando para o Oriente Médio, para participar da transmissão dos jogos da Copa do Mundo ao lado de veteranos como Galvão Bueno, Luis Roberto e Junior. Mas a responsabilidade passa longe de assustar a comentarista: “É só o segundo maior desafio da minha carreira, porque o primeiro foi chegar até aqui”, diz.
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Publicado em VEJA São Paulo de 5 de setembro de 2022, edição nº 2809