Otávio Augusto, 78, é um ator completo. Coleciona centenas de trabalhos, no teatro, na televisão e no cinema. Nascido em São Manuel, pequeno município do interior do estado de São Paulo, mudou-se para a capital ainda adolescente, quando iniciou a carreira artística. Com apenas 22 anos, subia ao palco do Teatro Oficina como Perdigoto, um dos personagens coadjuvantes de O Rei da Vela (1967), montagem do grupo do texto de Oswald de Andrade, que fundou o modernismo no teatro brasileiro.
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No Rio, para onde se mudou na década de 70, figurou em importantes novelas da TV Globo, como Vamp (1991), papéis que cativaram o grande público. Agora, comemorando sessenta anos de carreira, ele retorna à capital paulista com a peça A Tropa, de Gustavo Pinheiro, a partir de quinta (31), no Teatro Vivo. Na trama, ele interpreta um ex-militar idoso e viúvo que, no leito de morte, passa por um acerto de contas com seus quatro filhos. Na entrevista a seguir, o ator opina sobre as discussões suscitadas pela história, relembra a época do Oficina e as censuras que sofreu durante a ditadura.
Como o senhor definiria o seu personagem em A Tropa?
É um ex-militar idoso esperando para morrer no hospital, que os quatro filhos vão visitar por causa da doença. Ele é um homem muito arrogante e grosseiro, que submete todo mundo ao que ele quer. Os filhos, que sempre colocaram “pano quente” nessas atitudes do pai, não aceitam mais a situação e é a partir dessas relações que surgem os conflitos. A peça é muito contemporânea. O texto não mudou nada desde quando estreamos e, mesmo assim, foi se tornando cada vez mais atual com o passar dos anos.
Por que o senhor considera a peça contemporânea?
Porque ela fala do ser humano. Retrata situações que todos passamos com a família e também discute o poder, levando ao palco os arquétipos do pai que manda e dos filhos que obedecem. Acredito que os personagens simbolizam muito bem uma família brasileira. Trazemos esses conflitos com humor ao palco, o que faz com que o público simpatize (com a peça) e se identifique com os personagens.
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O senhor começou a atuar em emissoras de rádio na capital paulista, mas se aprofundou de vez no ofício no Teatro Oficina, na década de 60. Como foi parar lá?
Um dia, cheguei na Rádio São Paulo e a Liba Frydman, uma excelente jornalista da época, me sugeriu fazer o teste que ia acontecer no dia seguinte no Oficina. Eu disse: “Eu? Teatro Oficina? É meio chique demais para mim”. Acabei indo. Chegando lá, fiz o teste e passei. Era para uma peça do Lauro César Muniz, que serviria de reserva caso Os Inimigos, do Gorki (o dramaturgo russo Máximo Gorki), não fosse aprovada pela censura. Lembro que saí de lá — olha quanto eu era ignorante — pedindo pelo amor de Deus que a peça do Gorki fosse censurada para que eu conseguisse atuar. No final, mesmo com a liberação da censura, participei de Os Inimigos, em 1966, e entrei no elenco fixo do Oficina. Nos cerca de cinco anos em que fiquei lá, criei uma relação de amizade e respeito com Zé Celso (Martinez Corrêa). Participei de peças revolucionárias, que me
revolucionaram internamente também.
Como recebeu a notícia da morte de Zé Celso?
Existem pessoas que não morrem, porque a relação que a gente cria com elas é uma ebulição que fica dentro de você para sempre. O Zé é o tipo de pessoa que não faz parte da nossa vida apenas, mas sim do nosso afeto. E, para mim, o afeto é algo muito profundo.
Durante a ditadura, algumas das peças nas quais o senhor contracenou foram investigadas pelos militares e até censuradas, caso de Os Rapazes da Banda (1970), de Maurice Vaneau, e Encontro no Bar (1973), de Bráulio Pedroso. Lembra como foi?
Lembro muito bem. No caso de Encontro no Bar, estávamos em cena no Rio e percebi que uma mulher, que depois descobri ser esposa de um general, estava dormindo. De brincadeira, pedi para a plateia acordá-la, para que ela visse uma cena muito bonita que viria a seguir. No outro dia, um carro da Polícia Federal chegou na porta do teatro para me levar. O censor me repreendeu e me mandou embora. A peça não chegou a sair de cartaz, foi mais um recado, um “cuidado, rapaz”. Já Os Rapazes da Banda chegou a ser tirada de cartaz, por ser uma peça sobre amigos homossexuais. Participávamos eu, Walmor Chagas, Benedito Corsi, Dennis Carvalho… A trama tratava de um aniversário ao qual um dos amigos levava um garoto de programa de presente para o aniversariante. Foi um sucesso. O Teatro Cacilda Becker todo dia entupia de gente para ver. Depois, quando fomos para o Rio, não conseguimos estrear porque o texto não havia sido aprovado pelos militares. Só conseguimos montar no Rio uns dois meses depois. Era assim, íamos peitando. Naquela época, a censura era também econômica, pois só aprovavam o espetáculo depois de verem o ensaio geral, quando já estava tudo pronto. Ou seja, se não passasse, você perdia tudo, cenário, emprego. A censura é uma coisa imbecil.
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Diante das repressões que sofreu, como se sente vivendo, em A Tropa, um personagem que defende a ditadura?
Nenhum ator gosta muito de interpretar alguém assim. Procuro criar o personagem em cima das coisas que determinem mais quem ele é para a plateia.
Na TV Globo, onde já está há mais de cinquenta anos, o senhor fez papéis emblemáticos em telenovelas, como o vilão Matoso em Vamp (1991). Guarda um carinho especial por algum deles?
O Matoso, mesmo, que foi parcialmente uma criação minha. Quando o Calmon (Antônio Calmon, criador da novela) estava escrevendo a história, ele me falou que o meu personagem ia virar um vampiro. Fiquei enlouquecido tentando buscar a solução, até que sugeri que o Matoso tivesse não dois, mas um canino só, e acabou dando certo. Sem contar que o elenco era maravilhoso. Tinha o Ney (Latorraca), a Vera Holtz, a Cláudia (Ohana), a Patricya (Travassos). Foi um prazer contracenar com eles.
Publicado em VEJA São Paulo de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856