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“O movimento hip-hop é machista até hoje”, afirma grafiteira Nene Surreal

A artista veterana de 56 anos ganha um documentário em sua homenagem e inaugura um painel no Jardim São Luís, na Zona Sul, ainda na luta por reconhecimento

Por Mattheus Goto
Atualizado em 10 Maio 2023, 09h32 - Publicado em 24 mar 2023, 06h00
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  • São mais de 25 anos na rua. Ao sair de casa, Nene Surreal não enfrenta apenas as dificuldades de um grafiteiro comum. Mulher preta, periférica, mãe e lésbica, teve de lutar para ter reconhecimento no meio do hip-hop. Mesmo diante das adversidades, conseguiu levar sua arte de Diadema para o mundo — chegou até a participar do Festival Queer Wien Woch em Viena, na Áustria.

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    Essa trajetória está retratada no novo documentário Surreal, idealizado por Ketty Valencio e produzido pela Oxalá Produções, com financiamento do Edital de Apoio à Cultura Negra, da prefeitura.

    Além de contar sua história, ele narra o processo de produção de uma empena na Fábrica de Cultura Jardim São Luís, Zona Sul, onde foi realizada a primeira etapa do lançamento da obra, em 11 de março. Neste sábado (25), o documentário será apresentado novamente na Casa de Cultura da Vila Guilherme com roda de conversa, feira de afroempreendedoras e show de rap.

    A cena do hip-hop permeia todas as discussões e sua entrevista à Vejinha.

    Como surgiu a ideia do documentário?

    O projeto surgiu há quatro anos. A gente vinha conversando sobre a necessidade de ter registro das grafiteiras. Quando você faz uma pesquisa rasa, encontra pouca literatura, poucas fontes de pesquisa. Quando pesquisa sobre grafiteiros, tem uma gama enorme de conteúdo. Mas o documentário só começou a andar de fato há um ano, quando ganhamos o edital. Levamos vinte dias para nos organizar e oito para pintar.

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    O que ele diz a respeito dessas questões?

    O movimento hip-hop nos ajuda a entender o mundão, a se sentir pertencente. O sistema vê a gente como número e o hip-hop contraria tudo, dá munição para a gente acessar os espaços. O documentário é um registro de uma mulher de 56 anos que ainda está aqui e soube viver do grafite. Ele fala sobre vivência, mas também traz provocativas, questionamentos. O movimento hip-hop é extremamente machista até hoje, não consegue entender a importância das mulheres. Falta diversidade. Durante um tempo, só observei a cena. É fadado para a mulher preta o lugar de assistente. O documentário nasce desse impedimento de acessos. Nós, mulheres pretas, sempre estivemos lá.

    Qual foi a inspiração para o desenho da empena?

    A empena nasce de um sonho de uma mulher preta, minha namorada, Aline Vargas. Ela sonha com uma cabaça (um elemento das religiões de matriz africana que guarda segredos), sete cabeçudas e um véu de Oxalá. A cabeçuda é uma personagem minha que nasceu de uma cena de meninos na quebrada olhando para cima, empinando pipa. Era um personagem cabeçudo, magro, esperando algo dos céus, procurando um caminho. Inicialmente o chamei de cabeçudo. Mas ele passou por uma transição e evoluiu comigo, à medida que me reconheci como mulher preta, para virar a cabeçuda.

    Como sua relação com o grafite mudou ao longo dos anos?

    Antes de engravidar, não era uma profissão, era só um hobby. Nunca pensei na possibilidade de sobreviver da arte. A partir do momento que sou mãe, muda tudo. Eu não poderia fazer várias coisas, incluindo o meu hobby. Fui mãe muito jovem. Quando você tem um filho, não pode pensar só em você. Meus sonhos foram interrompidos. Precisei esperar minha filha chegar à pós-graduação para retomar o sonho. Volto para a rua com 30 e poucos anos. As pessoas acham que isso é estar velha. E ainda hoje sofro apagamento. Estou em poucos lugares. Mas estou insistindo. É um movimento de insistência, mais do que resistência.

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    “No cotidiano, as pessoas não se olham, não se enxergam, só estão indo pra um lugar. Quando estão em um ônibus, pode ser o único momento do dia de contemplar algo bonito”

    Nene Surreal

    Qual é a importância da arte urbana em uma cidade como SP?

    A arte faz pensar, abre caminhos. No cotidiano, as pessoas não se olham, não se enxergam, só estão indo para um lugar. Quando estão em um ônibus, pode ser o único momento do dia de contemplar algo bonito. Para além disso, se levar em conta a pichação, ela faz aquele menino que vem do extremo da periferia se apropriar do espaço e se sentir pertencente à cidade.

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    Como suas obras conversam com o espaço urbano?

    Eu não assino o meu trabalho. Quando termino, ele não é meu, não me pertence mais. São muitas trocas ao longo do processo, de muitas pessoas que dão palpite. Elas contribuíram e também podem se sentir representadas ali. Faço muitos rostos e sempre me questionam sobre o olhar triste. É um trabalho de vários atravessamentos. Eu digo que é um vômito, não só meu, mas de várias pessoas que são violentadas só por ser quem são. Elas trazem o questionamento de quem são essas pessoas na cidade, por onde andam, como, que horas, por que não andam em determinados lugares. Minha arte não é para gostar, é para refletir.

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    O que é grafite para você?

    É a atitude de ir para rua e expressar o que você sente. Arte para mim é gostar do que está fazendo. Nem sempre o que você gosta é o que as pessoas vão gostar. Todo esse movimento exige uma atitude. Às vezes nem sou corajosa, mas preciso da atitude de ir lá e mostrar que estou presente, que há diversidade, que arte não tem idade. Não é sobre estética, é sobre querer fazer.

    O que vê para o futuro do hip-hop?

    Espero que a gente consiga deixar uma história mais organizada, deixar as portas arreganhadas, principalmente para as nossas crianças, os nossos adolescentes. O choque de gerações é importante para rever o sistema. Acredito em mudança, revolução, amo a empolgação dos adolescentes, eles são incríveis e vão mudar esse rolê. A gente é muito importante para a educação. A gente é a educação. O hip-hop é a educação. Precisamos sentar para arrumar melhor isso, é um movimento muito lindo e importante, que tem a obrigação de chegar às pessoas certas, que realmente precisam. Estou nessa missão de não ser só por mim.

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    Que projetos quer realizar no futuro?

    Hoje o meu sonho é fazer uma exposição. Nunca consegui fazer uma de fato. Estou cheia de ideias. Preciso de ajuda. Muito louco como a falta de oportunidades afeta tudo isso. Minha evolução só acontece se eu conseguir tirar as ideias do papel.

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    Publicado em VEJA São Paulo de 29 de março de 2023, edição nº 2834

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