São mais de 25 anos na rua. Ao sair de casa, Nene Surreal não enfrenta apenas as dificuldades de um grafiteiro comum. Mulher preta, periférica, mãe e lésbica, teve de lutar para ter reconhecimento no meio do hip-hop. Mesmo diante das adversidades, conseguiu levar sua arte de Diadema para o mundo — chegou até a participar do Festival Queer Wien Woch em Viena, na Áustria.
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Essa trajetória está retratada no novo documentário Surreal, idealizado por Ketty Valencio e produzido pela Oxalá Produções, com financiamento do Edital de Apoio à Cultura Negra, da prefeitura.
Além de contar sua história, ele narra o processo de produção de uma empena na Fábrica de Cultura Jardim São Luís, Zona Sul, onde foi realizada a primeira etapa do lançamento da obra, em 11 de março. Neste sábado (25), o documentário será apresentado novamente na Casa de Cultura da Vila Guilherme com roda de conversa, feira de afroempreendedoras e show de rap.
A cena do hip-hop permeia todas as discussões e sua entrevista à Vejinha.
Como surgiu a ideia do documentário?
O projeto surgiu há quatro anos. A gente vinha conversando sobre a necessidade de ter registro das grafiteiras. Quando você faz uma pesquisa rasa, encontra pouca literatura, poucas fontes de pesquisa. Quando pesquisa sobre grafiteiros, tem uma gama enorme de conteúdo. Mas o documentário só começou a andar de fato há um ano, quando ganhamos o edital. Levamos vinte dias para nos organizar e oito para pintar.
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O que ele diz a respeito dessas questões?
O movimento hip-hop nos ajuda a entender o mundão, a se sentir pertencente. O sistema vê a gente como número e o hip-hop contraria tudo, dá munição para a gente acessar os espaços. O documentário é um registro de uma mulher de 56 anos que ainda está aqui e soube viver do grafite. Ele fala sobre vivência, mas também traz provocativas, questionamentos. O movimento hip-hop é extremamente machista até hoje, não consegue entender a importância das mulheres. Falta diversidade. Durante um tempo, só observei a cena. É fadado para a mulher preta o lugar de assistente. O documentário nasce desse impedimento de acessos. Nós, mulheres pretas, sempre estivemos lá.
Qual foi a inspiração para o desenho da empena?
A empena nasce de um sonho de uma mulher preta, minha namorada, Aline Vargas. Ela sonha com uma cabaça (um elemento das religiões de matriz africana que guarda segredos), sete cabeçudas e um véu de Oxalá. A cabeçuda é uma personagem minha que nasceu de uma cena de meninos na quebrada olhando para cima, empinando pipa. Era um personagem cabeçudo, magro, esperando algo dos céus, procurando um caminho. Inicialmente o chamei de cabeçudo. Mas ele passou por uma transição e evoluiu comigo, à medida que me reconheci como mulher preta, para virar a cabeçuda.
Como sua relação com o grafite mudou ao longo dos anos?
Antes de engravidar, não era uma profissão, era só um hobby. Nunca pensei na possibilidade de sobreviver da arte. A partir do momento que sou mãe, muda tudo. Eu não poderia fazer várias coisas, incluindo o meu hobby. Fui mãe muito jovem. Quando você tem um filho, não pode pensar só em você. Meus sonhos foram interrompidos. Precisei esperar minha filha chegar à pós-graduação para retomar o sonho. Volto para a rua com 30 e poucos anos. As pessoas acham que isso é estar velha. E ainda hoje sofro apagamento. Estou em poucos lugares. Mas estou insistindo. É um movimento de insistência, mais do que resistência.
“No cotidiano, as pessoas não se olham, não se enxergam, só estão indo pra um lugar. Quando estão em um ônibus, pode ser o único momento do dia de contemplar algo bonito”
Nene Surreal
Qual é a importância da arte urbana em uma cidade como SP?
A arte faz pensar, abre caminhos. No cotidiano, as pessoas não se olham, não se enxergam, só estão indo para um lugar. Quando estão em um ônibus, pode ser o único momento do dia de contemplar algo bonito. Para além disso, se levar em conta a pichação, ela faz aquele menino que vem do extremo da periferia se apropriar do espaço e se sentir pertencente à cidade.
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Como suas obras conversam com o espaço urbano?
Eu não assino o meu trabalho. Quando termino, ele não é meu, não me pertence mais. São muitas trocas ao longo do processo, de muitas pessoas que dão palpite. Elas contribuíram e também podem se sentir representadas ali. Faço muitos rostos e sempre me questionam sobre o olhar triste. É um trabalho de vários atravessamentos. Eu digo que é um vômito, não só meu, mas de várias pessoas que são violentadas só por ser quem são. Elas trazem o questionamento de quem são essas pessoas na cidade, por onde andam, como, que horas, por que não andam em determinados lugares. Minha arte não é para gostar, é para refletir.
O que é grafite para você?
É a atitude de ir para rua e expressar o que você sente. Arte para mim é gostar do que está fazendo. Nem sempre o que você gosta é o que as pessoas vão gostar. Todo esse movimento exige uma atitude. Às vezes nem sou corajosa, mas preciso da atitude de ir lá e mostrar que estou presente, que há diversidade, que arte não tem idade. Não é sobre estética, é sobre querer fazer.
O que vê para o futuro do hip-hop?
Espero que a gente consiga deixar uma história mais organizada, deixar as portas arreganhadas, principalmente para as nossas crianças, os nossos adolescentes. O choque de gerações é importante para rever o sistema. Acredito em mudança, revolução, amo a empolgação dos adolescentes, eles são incríveis e vão mudar esse rolê. A gente é muito importante para a educação. A gente é a educação. O hip-hop é a educação. Precisamos sentar para arrumar melhor isso, é um movimento muito lindo e importante, que tem a obrigação de chegar às pessoas certas, que realmente precisam. Estou nessa missão de não ser só por mim.
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Que projetos quer realizar no futuro?
Hoje o meu sonho é fazer uma exposição. Nunca consegui fazer uma de fato. Estou cheia de ideias. Preciso de ajuda. Muito louco como a falta de oportunidades afeta tudo isso. Minha evolução só acontece se eu conseguir tirar as ideias do papel.
Publicado em VEJA São Paulo de 29 de março de 2023, edição nº 2834