Negra Li celebra 25 anos de carreira: “Não troco meus 40 pelos meus 20”
Nascida e criada na Vila Brasilândia, a cantora e rapper revisita suas origens em novo disco com participação de Djonga e da sua filha, Sofia
Neste 2023 em que completa 25 anos desde quando entrou em estúdio para gravar com o grupo RZO, Negra Li inicia uma nova era em sua carreira. Cinco anos depois de seu último trabalho, ela lança seu quinto álbum neste semestre, com previsão para maio.
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A coletânea de faixas, que inclui os singles já lançados Malagueta e Era Uma Vez Liliane, remonta às suas origens e revive a Liliane de Carvalho que cresceu na Vila Brasilândia, Zona Norte. Aos 43 anos, a cantora se considera na melhor fase.
Quando começou a produzir o novo trabalho? Qual foi o processo?
Comecei a pensar em 2021, na pandemia. Em 2022, ficamos nos singles. E, em 2023, chegamos à versão melhorada, depois de medir a temperatura do público. Estamos agora no final da masterização e da mixagem. O norte foi a minha própria história, minha vida, o que eu estou vivendo, o que quero dizer. Isso facilitou bastante. A pandemia fez com que a gente olhasse para dentro e tivesse mais autoconhecimento.
E o que você tem vivido? Que temas podem ser esperados no disco?
Um deles é a minha redescoberta após a separação. Outro é a minha sexualidade, desde discurso sobre se autotocar até música que fala de relações com pessoas mais novas. Tem a minha vontade de ter uma ascensão financeira. E também os novos tempos que estamos vivendo com a união do povo preto e o empoderamento da mulher preta principalmente.
Quais foram suas referências? Que ritmos decidiu explorar?
Já fiz um pouco de tudo. Mas pegamos referências novas. Gosto muito do afrobeat e sempre coloco elementos nas músicas. Tenho flertado com o pop desde o meu primeiro disco-solo, não tinha como não ter essa sonoridade também. Hoje o R&B cresceu bastante, não só no Brasil como fora, com tantas vozes como a Summer Walker e a SZA, que me inspiram. Existe um fio condutor entre R&B, rap e pop.
Como surgiu a ideia para as colaborações com Djonga, Rincon Sapiência e sua filha, Sofia, de 13 anos?
Busquei pessoas em quem me inspiro. São mais jovens do que eu, mas me inspiram a continuar a fazer meu trabalho, a estar dentro do movimento rap, ressurgindo, reativando, revivendo. Além do Djonga e do Rincon, tem outras pessoas da nova geração. Por mim, seria um disco todo de feats. É muito gostoso misturar vozes e ideias, se juntar, colaborar. Os feats que fiz mudaram minha vida, como os do Charlie Brown e do Skank, me levaram para outros horizontes. E, com a Sofia, pedi gentilmente para ela participar de uma música em especial, que precisava de um refresh, uma voz jovem. Não tinha como não ser ela. É o meu legado e ela canta muito bem, tem a voz linda, com um vibrato natural. Usamos sutilmente e não vejo a hora de mostrar o resultado.
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Em sua trajetória, que experiências foram definitivas para quem é hoje?
Por incrível que pareça foi lá no comecinho: o meu primeiro contato com o estudo musical, no coral da USP, onde pude trabalhar do gênero erudito ao popular. Quando vi o leque de opções, me apaixonei. Aquele poder de cantar o que quisesse me encantou.
Após 25 anos, quais são as principais diferenças entre a Negra Li de hoje e a Liliane lá do começo?
Hoje eu tenho muita bagagem, experiência, estou mais madura e segura. Ao mesmo tempo, sempre tento resgatar o que a menina Liliane tinha, aquela coragem. Ela ajuda muito a Negra Li. Mas essa transformação foi fundamental, para colocar o emocional no lugar e aprender a lidar com as críticas. Não troco meus 40 pelos meus 20 (anos). São olhos de águia que não se tem quando é jovem. E sempre acredito que a fase do agora é a melhor que tenho para viver. Estou na minha melhor fase.
Deixei o espírito jovem, selvagem. Me transformei, ganhei mais serenidade, vi um medo tomando conta de mim, porque preciso dar o melhor para os meus filhos
Negra Li
Como o rap mudou nesses 25 anos?
Estou muito feliz com a maneira como o cenário musical está caminhando atualmente. Todos os nichos têm espaços claros, principalmente o rap. Ele me deu a oportunidade de entrar na música, sou eternamente grata pela família RZO. Vejo como tudo cresceu, existem festivais de rap e há a possibilidade de ganhar muito dinheiro. A gente veio de uma época em que era muito difícil ter espaço. O rap era boicotado na televisão. Ninguém queria ouvir as letras politizadas de protesto. Hoje temos nossa própria televisão, que é a rede social.
Em Era Uma Vez Liliane, você fala que saiu da periferia, mas a periferia nunca saiu de você. Como São Paulo e a Brasilândia estão presentes no seu trabalho?
Sempre tive muito orgulho de vir de onde eu vim. Quem faz rap sabe, sempre cantou a periferia, sempre levantou essa bandeira. Isso adormeceu por um tempo, principalmente por causa da maternidade. Deixei um pouco o espírito jovem, selvagem. Me transformei, ganhei mais serenidade, vi um medo tomando conta de mim, porque meus filhos não podem não ter uma mãe, preciso dar o melhor para eles. Mas aí meus filhos cresceram e veio a vontade de mostrar a eles o que era a mamãe nos anos 1990.
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Qual é a sua relação com a Brasilândia hoje?
Minha família toda mora lá, sempre vou na casa da minha mãe. Quando o Faustão me chamava de prefeita da Brasilândia, eu adorava. Eu sou assim. Sou uma pessoa com senso de pertencer. Faria uma vila e moraria com todos os meus parentes. Moro hoje em um condomínio fechado e meus filhos não sabem o que é esse senso de comunidade. Por isso, voltou ainda mais forte essa vontade de mostrar quem a gente é. Lá a gente aprende desde sempre a ajudar o próximo. E tenho muito carinho por todas as pessoas que me ajudaram, são uma referência para mim.
A Brasilândia mudou desde quando deixou de morar lá?
A luta continua igual. Apesar de ver mudanças positivas, me deparo com os mesmos problemas de vinte anos atrás. Fiz o clipe da música Brasilândia ao redor do bairro em 2019 e tinha esgoto a céu aberto. Ainda sinto um abandono, do governo, das prefeituras.
O que espera para os próximos 25 anos?
Espero estar aposentada, lógico. Mas vou continuar me movimentando. Faço questão de passar o legado para minha filha e para outras mulheres pretas que virão.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de março de 2023, edição nº 2833