São oito horas de uma manhã de outubro em Grasse, cidade de 50 000 habitantes do lado de Cannes, no sul da França. Curvados ou ajoelhados, sete mulheres e um homem arrancam uma a uma, a partir do pedúnculo rosado, as flores dos arbustos de cerca de 60 centímetros de jasmim. Reunidas num punhado, elas são colocadas em cestos de palha forrados com pano de algodão umedecido, protegidas à sombra. Faz três horas que eles trabalham. O silêncio impera nestes últimos 100 dias da colheita anual. Eles se concentram para encher as cestas antes que o sol da Côte d’Azur, mesmo ameno depois de brilhar tanto neste verão — choveu só quatro dias —, ameace queimar as pétalas. “Aproveitamos a bonne heure”, diz Carole Biancalana, à frente da plantação. Os jasmins florescem à noite, a partir das 19 horas, e a bonne heure — a boa hora — é o alvorecer. Até o meio-dia, o grupo, formado por moradores contratados para a temporada, colhe a florada da noite anterior.
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Daqui, segue para a usina de Robertet, em atividade desde 1850, a quinze minutos dali. Em uma hora, por maceração e destilação, as flores se transformam em absoluto, a essência do aroma. Quanto menos tempo se perde entre a flor recém-colhida e a transformação, mais se preserva o cheiro original. “O mundo pertence aos que acordam cedo”, completa Carole, que tem acordado na boa hora, sete dias por semana durante a colheita, desde 1999, quando assumiu a propriedade da família. Dos irmãos, só ela se interessou pelo cultivo de flores, uma especialidade da época dos seus tataravós, que venderam à Chanel (para a produção do Nº 5) rosas centifólias — com as 100 pétalas fechadas, parecem repolhos —, plantadas hoje em 2 hectares. Carole trocou a carreira de executiva pela terra, batizando o lugar de Domaine de Manon, em homenagem à filha, que, por ora, não pensa em entrar para a história como a quinta geração de agricultores dos Biancalana.
O Manon é um domínio em extinção. Restam duas dezenas de produtores em Grasse — variedades de flor-de-laranjeira, íris, jacinto, violeta e lírio crescem aqui. Poucos se especializam em jasmins e rosas. Numa indústria de 37 bilhões de dólares, é preciso volume de mais e custo de menos para jogar nas prateleiras milhões de unidades de Girlfriend, de Justin Bieber, ou de Glow, de Jennifer Lopez. O jasmim do sul da França custa 30% a mais do que a variedade sambac do Egito. Um quilograma de centifólia vale dez vezes mais do que a rosa damascena-da-bulgária, disparate que contribuiu para a produção cair de 5 000 toneladas por ano na década de 40 para as atuais 30 toneladas. Com a produção, da terra à transformação, menor e mais cara de flores, Grasse jamais daria conta do recado. Para isso, existem moléculas sintéticas manipuladas em laboratório.
Do alto da colina suavemente íngreme de Manon, avistam-se as roseiras em pleno descanso para a próxima colheita, sempre entre 8 e 9 horas das manhãs de maio, quando as pétalas se abrem. Chamada de rosa-de-maio por causa do curto período da floração, a planta tem uma expectativa de vida de quinze anos. Cada pé produz de 300 a 400 flores num único mês. Carole resgatou uma técnica botânica milenar para torná-las menos frágeis. Com um estilete, ela abre um veio no acúleo, a saliência no caule da roseira. Nele, ela insere um fragmento do caule de uma roseira selvagem. No crescimento, os tecidos se misturam. A centifólia ganha, assim, resistência da planta rústica. “Dispenso químicos”, diz. Na frente do roseiral, espalham-se as fileiras verdes salpicadas de pontos brancos, cada qual com cinco pétalas abertas, e botões pink, em 5 000 metros quadrados de jasmim, numa paisagem que seduziria um pintor impressionista a trocar qualquer outra fatia da Provença por essa, dos Alpes Marítimos. De perto, a visão perde o sentido, ofuscada pelo olfato. À medida que o sol esquenta, o jasmim exala a razão pela qual se tornou ingrediente da perfumaria. O aroma é delicado, mas toma conta do ar. Carole junta alguns em suas mãos e convida a cheirá-los. Dependendo do sol e da umidade, lembra amêndoa. Hoje, banana.
Importado da Índia no século XVII, a variedade jasmim-da-espanha de Grasse realiza o sonho de qualquer mortal, que, diante de um buquê, mergulha o nariz em busca do perfume (outras variedades precisam de um estímulo de calor para se pronunciar nessa intensidade). Os narizes que os utilizam na fórmula esperam reproduzir a sensação na abertura do frasco. Contam-se nos dedos: Chanel Nº 5, Van Cleef & Arpels First e Annick Goutal Le Jasmin, que leva também jacinto da região. A prefeitura de Grasse exalta a parceria recente com o grupo LVMH, cujos “perfumistas se inspiram na nossa produção”. De 2006, uma edição limitada de Very Irrésistible, da Givenchy, consumiu 1 200 pétalas de centifólia de Châteauneuf-Grasse. De 2010, o Christian Dior J’Adore L’Or coloca Grasse dentro de ânforas de cristal Baccarat. A fórmula de 2014 contém 1% de absoluto de centifólia e 1% de jasmim-da-espanha de Manon, condimentados com extrato de absoluto de baunilha do Taiti e absoluto de fava tonka. Cada litro de absoluto se dilui em 1 000 frascos de 100 mililitros. O L’Or é comercializado em 40 mililitros por 459 reais — mais que o dobro do valor dos 50 mililitros do J’Adore Eau de Parfum, com rosa-damascena-da-turquia e jasmim-sambac. O contrato com a Dior permitiu a Carole dormir tranquila. A colheita dos próximos sete anos está vendida à grife francesa. “Antes, tudo era instável”, diz ela, que negociou pontualmente com Thierry Mugler e Estée Lauder.
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Um em cada doze habitantes depende diretamente da indústria dos aromas, sustentada pelos fabricantes de alimentos. Um em cada quatro depende indiretamente, caso do turismo. Grasse se vende como a capital mundial do perfume. É tomada por turistas no verão: 900 000 passaram, em 2013, pelo Museu Fragonard, marca local de 1926, estampada também em sabonetes e difusores. O museu se soma às atrações dedicadas à perfumaria nessa cidade medieval. Aparece como segundo endereço mais visitado da Côte d’Azur — o Museu Matisse, em Nice, ficou aquém dos 190 000 visitantes. Não é mero discurso marqueteiro. A especialidade nasceu da necessidade. A partir do século XII, os curtumes movimentavam a vida aqui, apoiados na exportação de luvas. Para dissimular o mau cheiro, os produtores resolveram elaborar cremes para passar na pele. Logo o perfume suplantaria o couro. A centifólia, aqui desde o século XVI, se juntou ao recém-importado jasmim-da-espanha. Protegidos do vento pelos Alpes, expostos ao sol numa altitude de 300 metros e com a umidade do Mediterrâneo e um solo rico em ferro, cobre e zinco, ambos se adaptaram de maneira excepcional — pela qualidade, são chamados de feurs d’exception. “Eles se comparam aos melhores vinhos”, diz Carole. Jasmim e rosa dessas terras equivalem ao vetiver do Haiti, ylang-ylang da Ilha de Comores, patchouli da Índia e sândalo do Sri Lanka. “Temos um terroir sem igual.”
Neste outubro de outono, as ruelas com predinhos de um alaranjado típico da Riviera Francesa estão vazias. Difícil encontrar um restaurante para jantar. Até o cassino está entregue à própria sorte. Em três dias, a colheita chega ao fim. Os campos não hibernam. Carole, o pai e um funcionário assalariado se preparam para o inverno revolvendo a terra e, neste ano, ampliando a área das centifólias. As mudas levam pelo menos um ano e meio para florescer. Nas horas vagas, Carole faz geleia com as flores de exceção na cozinha da casa, de dois andares, voltada para a plantação. A cada temporada, o Manon produz 1 000 quilogramas de jasmim e entre 3 000 e 6 000 de rosa. Um trabalhador colhe 1 quilograma de jasmim, ou 10 000 flores, por manhã. Para 1 litro de absoluto, vendido a 13 500 euros, são necessários 600 quilogramas de jasmim — ou 6 milhões de flores. Um quilograma de absoluto de rosa consome 3 000 quilogramas. “Não temos quantidade para estocar”, diz François Demachy, diretor da perfumaria do LVMH e nariz da Dior. Nas marcas do grupo e na declinação das fragrâncias para cosméticos, ele atua como mestre e controle de qualidade. Na Dior, cuida de uma coleção de dezesseis perfumes, masculinos e femininos. O mais antigo é o Miss Dior, apresentado com a coleção de estreia do costureiro, em 1947. Para assegurar a existência do J’Adore L’Or, guardou três anos de absolutos.
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Demachy é grassois, filho desse terroir como Jean-Claude Ellena, perfumista da Hermès e morador de Grasse. Coube a ele o gesto de se aproximar das feurs d’exception. “Nossas raízes ficam mais importantes à medida que o tempo passa”, conta ele, 65 anos. Cresceu entre aromas sem perceber que, assim, desenvolvia o nariz. Adivinha quando vai chover pelo ar, antes de o cinza tingir o céu. Ensina o filho de 9 anos a farejar que chiclete de morango em nada reflete o morango fresco e orgânico e que Fanta não é suco de laranja. O menino distingue pelo odor de que animal vem a carne que o pai prepara em casa. Demachy presta mais atenção ao que come e bebe, seja vinho, chocolate ou chá. “O olfato perdeu o papel vital para a visão quando deixamos de ser caçadores, mas é rico em sensações”, diz. Sobre a mesa do escritório em Paris ficam centenas de minifrascos transparentes, cujo conteúdo líquido ele consulta mergulhando as tiras de papel para pensar em misturas. Entre eles, os absolutos de Manon. Nos quadros e bibelôs de porcelana, mulheres nuas o cercam. “Preciso da carne para alimentar minha imaginação”, afirma. Ao lado, seis laboratoristas materializam suas invenções, balanças eletrônicas de precisão ao alcance do conta-gotas. Geladeiras guardam 700 matérias-primas. Duas estufas reguladas para 40 e 50 graus aceleram o envelhecimento das fórmulas. Faz parte estudar como o cheiro se comporta ao longo do tempo, na pele e no frasco. O perfumista passou trinta anos sob o comando de Jacques Polge, o terceiro (e em atividade) da Chanel. Ao assumir o posto no LVMH, em 2006, reativou a atividade na forma mais romântica — aquela que troca o laboratório pelo campo. “Os perfumistas perderam o hábito de colocar o nariz na flor”, comenta Agathe Beauchesne, diplomada em química pela Universidade de Versailles e pós-graduada em perfumaria pelo ISIPCA, duas instituições de referência do métier. Agathe se candidatou à colheita no Manon neste ano. Começou pela rosa. Engatou no jasmim. O objetivo é sentir o odor na origem — as amêndoas e as bananas de que fala Carole. Aprendeu a respeitar a centifólia. Acredita que o jasmim “tem muita classe” (mas prefere os orientais, caso do Ambre Nuit, assinado por Demachy, que ela cita como referência). Seu plano é virar perfumista para os perfumistas: quer identifcar pelo mundo ingredientes naturais com vocação para matéria-prima. “A real perfumaria não é uma vida de laboratório.”
A volta a Grasse é tanto uma viagem nostálgica de Demachy quanto um esforço, por assim dizer, de resgatar o valor do suco de laranja diante da Fanta. “O cérebro decodifica apenas 15% do cheiro, e o resto passa a morar no inconsciente”, diz. “Precisamos cuidar para que a informação que fica seja da melhor qualidade.” Esse grassois aceita sem problemas os maus cheiros — ao chegar a Paris, ficava mais perturbado com o frio do que com o fedor do metrô. Rejeita o uso excessivo de aromatizantes, dos produtos de limpeza à (sim) gasolina. Acha arrogante manipular um aroma a ponto de transformar a essência original, afinal “um jasmim é um jasmim, e não um bombom de jasmim”, fazendo referência à mania atual dos cosméticos de massa, de “gourmetizar” as criações. Não surpreende que seu desejo como perfumista seja reproduzir o cheiro da rosa centifólia no pé, recém-aberta numa manhã de primavera em Grasse.