Delicadeza monumental: o violão e os novos horizontes de João Camarero
Grande nome da nova geração de violonistas brasileiros, instrumentista paulista toca Baden Powell em novo EP e inicia assessoria artística no Municipal

As unhas da mão direita de João Camarero não são cortadas, são polidas. Com precisão, para evitar a aspereza e alcançar a excelência do som ao tocarem as cordas.
Pode-se pensar que, para um violonista requisitado, essa é das suas maiores preocupações, entre as horas de estudo e os concertos mundo afora. Mas, pelo menos para o jovem paulista, reconhecido como grande nome da nova geração do violão brasileiro, a música vai além do nylon e da madeira.
Nascido em Ribeirão Preto, em 1990, o então garoto de vívidos olhos azuis começou a estudar música aos 8 anos, em Avaré (SP), com a cantora e professora Lucila Novaes. Primeiro, o piano, depois, a bateria. O companheiro de sete cordas só apareceria na sua vida por volta dos 15 anos.

“Foi uma mudança radical. Como se um bichinho do Brasil tivesse me picado, comecei a ler bastante Vinicius de Moraes, e cruzei com discos como Solitude on Guitar (1971), do Baden Powell, os primeiros do Cartola (de 1974 e 1976), com o Dino Sete Cordas”, conta.
As primeiras referências acompanham o instrumentista até hoje, tanto que seu trabalho mais recente é o EP Baden, lançado no último dia 31, com cinco interpretações de peças do mestre fluminense desse instrumento.
“Tem um texto de Clarice Lispector sobre Brasília em que ela fala do espanto da beleza. É como uma explosão, com aquele rastro de vento varrendo tudo. Baden foi isso, alguém que definiu um estilo muito próprio”, diz Camarero, que segue a linhagem da excelência do violão brasileiro continuada por Raphael Rabello (1962- 1995).
“Penso que nós, enquanto artistas, temos que estar sempre em uma situação de quase risco criativo. A autenticidade vem com o tempo, é algo meio mágico. Se se tenta pegar, ela foge. Algo que o Baden tinha, por exemplo: ele punha a mão no violão, tocava uma nota e você sabia quem era”, garante.
No interior de São Paulo, tocou suas primeiras notas sob a influência do choro e os ensinamentos de violonistas como Teixeira de Abreu e Daniel Pereira, e, no Rio de Janeiro, se descobriu solista.
“Lá, eu conheci o João Lyra, ele colocou essa pulga atrás da minha orelha. Fui estudar com Vicente Paschoal, um grande professor, mais ligado ao violão clássico. Sempre gostei muito de música clássica, então tive um ideal sonoro um pouco diferente do violão popular”, explica o músico, que, pouco antes de se mudar para a capital paulista, em 2020, conheceu uma figura importante na sua trajetória: Maria Bethânia.

Tocou em faixas do álbum Noturno (2021), da cantora baiana, e a acompanhou em seus shows. Com ela, também interpretou o Hino Nacional na posse de Luís Roberto Barroso como presidente do STF, em 2023. Dori Caymmi e Paulinho da Viola — com quem compôs um tema instrumental, ainda inédito — são outros bambas da música com quem Camarero colaborou.
Nos últimos anos, seus horizontes profissionais começaram a se alargar para além do violão — “tirei a cabeça de dentro do instrumento”, como ele diz. No ano passado, fez um trabalho de curadoria para a série 2025 do Teatro Cultura Artística, e hoje é assessor artístico para projetos especiais do Theatro Municipal de São Paulo.
Com os novos desafios, decidiu cursar gestão pública na FGV. “Percebo que existe um abismo entre os dois mundos: as pessoas que fazem cultura e as pessoas que decidem. A retomada do Ministério da Cultura é um grande avanço, mas acho que precisamos ter debates mais profundos. Para mim, só abrir edital e distribuir dinheiro não é política pública de cultura. O que estamos fazendo efetivamente para garantir a perenidade dos programas?”, questiona o músico, cujo talento o transformou em uma espécie de “embaixador” do violão brasileiro no exterior, se apresentando em países como Japão, Estados Unidos, Coreia do Sul e Moçambique a convite do Instituto Guimarães Rosa, do Itamaraty.
“Acho que nós (músicos) conseguimos contribuir não só do ponto de vista curatorial, mas também ter soluções criativas em outros âmbitos. Eu, enquanto fazedor de música, também posso ajudar a girar essa roda”, acredita.
As viagens com o violão lhe revelaram outra paixão: o café. Hoje, é sócio, ao lado de Tiago Damasceno, do Corisco, marca de torrefação de cafés especiais. “Viver de arte não é moleza. No final eu sou músico, não tem jeito, mas esses caminhos vão acrescentando à música, direta ou indiretamente”, diz.
Neste ano, Camarero assinará a produção de discos ligados ao samba e vai estrear um concerto para violão e orquestra composto por Sérgio Assad, além, claro, de cair na estrada mundo afora. Para quem quiser conferir o trabalho do artista, no dia 21, ele apresenta o show Coração Brasileiro no Bona Casa de Música, ao lado de Tatiana Parra e Zéli Silva.
É a chance de ver essa relação íntima, entre Camarero e violão, de perto — uma arte que, na sua precisão mínima, causa movimentos grandiosos. ■
Bona Casa de Música. Rua Doutor Paulo Vieira, 101, Sumaré, ☎ 3813-7773. ♿ Sex. (21), 21h. R$ 70,00 a R$ 140,00. eventim.com.br.
Publicado em VEJA São Paulo de 7 de fevereiro de 2025, edição nº 2930