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Notas exclusivas sobre artistas, políticos, atletas, modelos, empresários e pessoas de outras áreas que são destaque na cidade. Por Humberto Abdo.

Leilão milionário: acervo raro será vendido após passar por sete gerações de família paulista

Com louças, móveis e obras de arte, coleção histórica acumulada pelos Silva Prado atrai o interesse de compradores do mundo todo

Por Humberto Abdo
16 jun 2023, 06h00
Mulher branca de cabelos lisos castanhos posa sentada em banco ao lado de piano com pintura em verde, amarelo e rosa. Ao fundo, uma biblioteca com teto bege em destaque.
Coleção única: Marjory Prado leiloa acervo histórico mantido por sete gerações. (Wanezza Soares/Veja SP)
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“Nunca me apeguei a essas coisas materiais”, diz Marjory Prado, 49, enquanto acende seu cigarro e se senta diante de um relógio francês avaliado em mais de 180 000 reais. Fabricada pelo marceneiro oficial do rei Luís XIV, a peça é ainda mais rara que a versão destruída durante a invasão ao Planalto, em Brasília, em janeiro deste ano. E essa está intacta. A relíquia faz parte de um acervo histórico com mais de 2 000 itens, mantido por sete gerações de uma das famílias mais tradicionais de São Paulo, que começou com o Barão de Iguape e sua filha Veridiana Valéria da Silva Prado, a tetravó de Marjory. Dona atual de todas as louças, móveis e obras de arte acumulados pelos seus antepassados desde o século XVIII, ela decidiu leiloar tudo — ou melhor, quase tudo.

“Peguei coisas de valor sentimental, como a saladeira e o faqueiro que minha mãe usava, e uns dez quadros, incluindo um Di Cavalcanti.” No total, o valor da coleção chega a quase 10 milhões de reais e fica em um casarão modernista de 2 000 metros quadrados, nos Jardins, assinado por Oswaldo Arthur Bratke, um dos mais importantes nomes da arquitetura paulista. “Que também está à venda por 25 milhões.”

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Em fundo preto, relógio antigo de madeira escura e bronze.
Relógio francês por André Charles Boulle: lances a partir de 180 000 reais. (Michael Rodrigues/Divulgação)

Filha de Veridiana da Silva Prado (o mesmo nome da matriarca nascida no século XIX, mas sem Valéria), a empresária escolheu se desfazer dos objetos após a morte da mãe, em abril. “Ela era toda tradicional, gostava de fazer jantares, servir à francesa e morar com tudo isso. Não queria vender nada, nem essa casa, mas me deu liberdade para escolher o que fazer depois que partisse.”

Assim como as famílias “quatrocentonas” da capital, o estilo de vida cerimonioso e seus acessórios — como as pratarias portuguesas — são cada vez mais difíceis de achar. “Não sei se os novos ricos de hoje querem saber de pratas como essas, elas exigem manutenção a cada quinze dias”, pondera Margarida Cintra Gordinho, autora do livro Cinco Antônios: Duas Cidades, que conta a trajetória dos familiares.

Senhora de cabelos curtos brancos aparece sentada em frente a mesa de madeira preta com pratarias. Ao fundo, uma grande prateleira de fundo rosê exibe porcelanas. No topo, um grande lustre iluminado.
Por dentro: Margarida assina livro da família Silva Prado; na foto, um lustre Baccarat e parte do serviço de jantar de porcelana chinesa Companhia das Índias, com mais de 600 peças. (Wanezza Soares/Veja SP)
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Mas muitas das peças guardadas na casa são bem mais cobiçadas e prometem atrair colecionadores particulares do mundo todo, como um livro repleto de ilustrações sobre a época do Brasil holandês, encomendado a Gaspar Barleus pelo conde Maurício de Nassau.

“É um objeto de desejo para qualquer biblioteca do mundo”, resume Daniel Rebouço, gerente e coordenador de leilões da Blombô, responsável pelo leilão. “Ele é de 1647 e passou por um restauro recente. Estamos fazendo uma forte campanha de divulgação na Europa e na Ásia.” Especialistas acreditam que existam pouco mais de trinta exemplares remanescentes no mundo. Pela raridade, é um dos itens mais caros do catálogo e terá lances a partir de 380 000 reais, seguido por pinturas de Moïse Kisling, José Pancetti, Anita Malfatti, Emiliano Di Cavalcanti e Manabu Mabe.

Livro aberto em mesa de madeira exibe ilustração de natureza.
O Brasil holandês por Gaspar Barleus em exemplar raro feito em 1647. (Wanezza Soares/Veja SP)

“Os quadros fazem um passeio pela história brasileira e contemplam períodos de viagens desses pintores, portanto esse é um leilão que atrai muitos públicos, dos colecionadores iniciantes aos mais importantes.”

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Outras raridades são o cavalo Tang de porcelana, de 600 d.C., e o serviço de jantar Companhia das Índias (nome dado à antiga porcelana chinesa), com mais de 600 utensílios, de travessas a xícaras. “Encontrar um jogo com tantas peças como esse é extremamente incomum hoje em dia”, admira-se Daniel.

Cavalo de porcelana aparece de lado, com a cabeça abaixada, em prateleira de madeira.
Cavalo de terracota chinesa da dinastia Tang (600-900 d.C.). (Wanezza Soares/Veja SP)

O grande acervo é apenas uma das heranças deixadas nas mãos da única filha remanescente. Na família, composta de políticos, banqueiros e empresários, seus antecessores fundaram o Clube Atlético Paulistano, incentivaram a criação da Copa do Mundo e foram destaque na Semana de 22. Seu bisavô, Antônio da Silva Prado, foi o primeiro prefeito republicano de São Paulo por onze anos e sua avó foi a primeira mulher a cruzar os Estados Unidos de avião — além de herdar seu nome, Marjory acredita ter puxado dela o espírito aventureiro.

“Ela era atriz de Hollywood e conheceu meu avô em uma boate. Após uma semana, deu tchau para a família, pegou o navio e se casou com ele no Brasil”, conta. Enquanto a tetravó de Marjory é conhecida por ter incentivado a paixão pelas artes, a americana foi a principal responsável por quebrar tradições.

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“As outras senhoras eram só as esposas. Ela era a moça com ideias próprias, que trabalhava, abriu uma boate para mulheres e criou os Cristais Prado, com vendas dentro de casa. Ninguém nunca tinha visto essas coisas, como assim abrir sua casa e fazer uma loja?”, diz Margarida. “Que nem eu aqui abrindo de novo para vender tudo!”, completa Marjory.

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Quadro exibe moça branca de vestido bege posando em frente a cortina.
Tia-avó Maria Helena: quadro exibe o mesmo anel de pérola usado por Marjory até hoje. (Wanezza Soares/Veja SP)

“Tinha um escravagista, um abolicionista, um político importante que foi até ministro do imperador e um esportista, então eles sempre foram diversos”, explica Margarida. A escritora destaca um episódio para ilustrar a influência do grupo nos esportes e na cidade. “A Dona Veridiana era dona de boa parte da Consolação e pegou uma grande área para fazer um velódromo… Tudo porque o neto gostava de andar de bicicleta”, conta. Localizado entre as ruas Augusta, da Consolação e Martinho Prado, ao lado da Igreja da Consolação, o projeto pessoal da matriarca deu origem ao Velódromo Municipal. “E depois ali se tornou o primeiro campo de futebol de São Paulo.”

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Próximo dali, na atual Avenida Higienópolis, ficava seu palacete, que recebeu visitas importantes de intelectuais e uma de dom Pedro II. Usado para eventos, hoje o local abriga o Iate Clube de Santos. E, no Jardim Paulistano, o casarão neoclássico transformado no Museu da Casa Brasileira pertencia a Fábio Prado, que também compõe a árvore genealógica.

Parede com quadro de retrato de uma moça de cabelos pretos e mesa de canto com peças de marfim.
Peças de marfim e pintura do francês Moïse Kisling (1891-1953), com lances a partir de 380 000 reais. (Wanezza Soares/Veja SP)

Aos 30 anos, Marjory escolheu a independência ao viajar sozinha pelo Brasil e acabou trabalhando com uma ONG em Fernando de Noronha e no Xingu, “tomando banho no rio e dormindo na oca” — para o choque do pai, Luiz Misasi, um italiano ativo e falante. “Aprendi a esquiar com ele depois que se casou com uma italiana e viajávamos todo ano.”

Também era ele quem recitava com bom humor algumas das anedotas nos jantares e aniversários. “Teve a época em que a Maria Helena, minha tia-avó, foi morar em Paris durante a guerra. O marido disse ‘não podemos gastar, estamos em guerra!’, e ela aceitou. Depois desceu até o saguão do hotel e pediu ao porteiro ‘por favor, me chame um ônibus!’”, diverte-se. “Não tinha ideia de como fazer! Ele contava histórias como essa, tirando sarro da família da minha mãe.”

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Parede com quadro de paisagem e uma mesa de canto com livros e abajur de marfim.
Quadro do brasileiro José Pancetti (1902-1958), da série Itapoã. (Wanezza Soares/Veja SP)

Hoje ela trabalha no mercado imobiliário e mora com os dois filhos adolescentes. Com transmissão ao vivo de 26 a 29 de junho, o leilão será feito na casa dos Jardins e 3% do montante ficará reservado à ONG The Friendship Circle Brasil, que promove a convivência entre pessoas com deficiência e jovens voluntários. “Tenho uma filha autista e morro de medo porque ela não lê, não escreve, faz mil terapias. Devo deixar esse dinheiro para ela”, planeja. “Mas pouca coisa deve mudar. Quero continuar trabalhando.”

Foto com quatro peças de porcelana chinesa: em sentido horário, série de pratos, molheira, jarra e travessa.
Utensílios de rara porcelana chinesa Companhia das Índias, composta de molheiras, pratos, xícaras e travessas em mais de 600 peças no total. (Michael Rodrigues/Divulgação)
Piscina com borda oval aparece em primeiro plano ao lado de gramado e casa de dois andares em linhas retas.
Assinada por Oswaldo Arthur Bratke: casa à venda por 25 milhões de reais. (Wanezza Soares/Veja SP)

Publicado em VEJA São Paulo de 21 de junho de 2023, edição nº 2846

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