As mulheres sofrem uma enorme pressão para atenderem as expectativas ditadas pelos padrões de beleza da atualidade. Essa pressão é ainda maior no caso das mulheres acima do peso, o que produz enorme sofrimento e inviabiliza a superação dos problemas gerados pela obesidade. A psicóloga Andrea Cembranelli, que trabalha com mulheres nesta condição, escreve hoje sobre o tema apresentando um caminho possível para viver bem apesar da obesidade. Boa leitura!
Por que odiamos tanto o nosso corpo? Um olhar sobre a obesidade feminina
Por Andrea Cembranelli
É absolutamente frequente e corriqueira a insatisfação das mulheres em relação ao próprio corpo. Quem nunca se sentiu inferiorizada e frustrada em relação a si mesma nas rodas de conversa femininas quando só se fala sobre o tratamento estético do momento e a nova dieta da moda? Quem nunca se sentiu culpada e com vergonha por não aderir ao procedimento médico que fez tal pessoa emagrecer tantos quilos em poucas semanas ou por não seguir o ritual de beleza e atividade física das blogueiras da atualidade? Há uma baixa autoestima e uma sensação de desajuste constante das mulheres em relação ao próprio físico.
Isso fica evidenciado nas postagens em redes sociais nas quais “selfies” de biquínis, discursos motivacionais de “foco, força e fé” e “coaches” de emagrecimento prometendo perda rápida de peso ganham bastante espaço. Que sofrimento e dor são esses vivenciados pelas mulheres que acabam não sendo elaborados e são então depositados nessa repulsa ao próprio corpo? E se as mulheres magras já se sentem tão tiranizadas pela mídia e reféns desse padrão estético avassalador, como é a experiência emocional das mulheres com sobrepeso e obesidade?
É fundamental lembrar, antes de mais nada, que vivemos em um mundo feito para pessoas magérrimas e com um padrão específico de corpo. Nesse contexto, mulheres com sobrepeso e obesidade sentem-se majoritariamente invisíveis para a indústria da moda e sem lugar social. Elas sentem que não conseguem vestir o que “querem”, mas “o que tem no tamanho delas”.
Sentem-se pressionadas o tempo todo a esconder seus corpos por meio de cintas e a emagrecer custe o que custar. Ouvem palpites sobre dietas e seu próprio físico sem terem introduzido o assunto. Sentem-se julgadas em suas escolhas alimentares o tempo todo (seja uma salada ou uma lasanha). Sentem que devem “compensar” seu excesso de peso com outra característica psicológica marcante como ser “muito engraçada”, “muito dócil e agradável com as pessoas”, “muito dedicada no trabalho” como se o excesso de peso as definisse em absoluto ou fossem reduzidas apenas a esta característica.
Mas, antes de mais nada, sentem-se muito sozinhas. Devastadoramente sozinhas. Há uma dor e um sofrimento silencioso em quem se sente fora do padrão estético atual. A baixa autoestima é marcante, as oscilações emocionais são frequentes (a sensação de que está tudo bem até que se é lembrada sobre o próprio corpo e tudo cai então sobre a cabeça), o sentimento de culpa, vergonha e a repulsa ao espelho predominam. Há um isolamento social, diminuição da libido e uma grande sensação de fracasso e impotência.
Para entender tal mecanismo, é preciso, primeiramente, apontar que essa insatisfação corporal é “alimentada” pela nossa sociedade. O controle social na atualidade é marcado pelo prevalecimento da beleza exterior e dos atributos da aparência física em detrimento de fatores psicológicos e emocionais e se o sujeito não corresponde a tais ideais, ele não tem lugar dentro da organização social.
Assim, para ser considerada uma pessoa “de sucesso”, é demandado que ela encarne o que a sociedade dita em termos de padrões estéticos, sociais, culturais ou ela sofre um rechaço e desprezo social dentro de uma lógica “tudo ou nada” absolutamente implacável. Ou a pessoa tem o corpo semelhante à da musa fitness ou se sente fracassada. Ou ela passa a vida fazendo dieta e buscando desesperadamente emagrecer ou se sente aquém da expectativa social. Ou ela posta seguidamente “selfies” de seu rosto mandando beijinho no Instagram ou se sente sem lugar. Ou ela encarna o que a sociedade exige dela em termos de trabalho, relacionamentos, vida familiar ou se sente deslocada nos grupos sociais.
Dentro de uma sociedade predominantemente machista e misógina na qual vivemos, o controle social ocorre então pela submissão do corpo feminino a esse padrão estético inalcançável. As psicanalistas Joana de Vilhena Novaes e Junia Vilhena colocam, em pesquisa de 2006, que frente a esse ideal estético “inatingível e sobre-humano”, cabe à mulher apenas duas escolhas: ou ela encarna o corpo da moda ou ela apresenta uma relação de ódio contra seu físico e contra si mesma por se ver distante desse ideal. Sem meio termos. Ou tudo ou nada.
Assim, a pessoa gorda sente seus gostos apagados, seu desejo silenciado e se sente invisível nas suas vontades, o que lhe gera mais ansiedade e consequentemente mais voracidade alimentar. A comida e o corpo ficam então como depósitos das angústias do sujeito, dos afetos não elaborados, dos sentimentos que ficaram “engasgados” e que não conseguiram ser “digeridos” emocionalmente.
Quando chega um paciente novo em meu consultório queixando-se de sua obesidade, proponho sempre pensar o que está para além do peso. Quais as raivas engolidas, as mágoas presas na garganta, as tristezas guardadas embaixo do tapete que acabaram se transformando em um excesso no corpo?
Percebo, muitas vezes, além disso que quem está insatisfeito com o próprio corpo sofre de uma submissão implacável a um ideal. Isto é, obedece a lógica do “tudo ou nada” na relação consigo mesmo: ou o corpo perfeito ou nada. Ou sou “a mãe do ano” ou nada. Ou sou a esposa perfeita ou nada. Ou sou a funcionária do mês ou nada. Na busca impossível dessa satisfação, há uma grande carga de ansiedade gerada e a sensação de fracasso é iminente. É por conta desse funcionamento psíquico que boa parte das pessoas diz comer “por ansiedade” e relatam sentirem-se sempre frustradas consigo mesmas.
Neste sentido, a sensação que a pessoa com sobrepeso e obesidade tem constantemente é que carrega o “peso do mundo nas costas”. Mais até do que o peso físico, queixam-se sobretudo desse mal-estar psíquico, desse sentimento de “fazerem tudo pelos outros e nunca ser suficiente”, “de desempenharem o papel de mulher-maravilha nas relações e nunca serem reconhecidas por isso” e de “viverem a vida a sangue, suor e lágrimas”.
Por esse motivo, o que busco com minhas pacientes no consultório é a construção de uma leveza interna e de um empoderamento de si mesmas e de seus desejos. Isso passa, no primeiro momento, por uma desconstrução desse ideal do feminino associado à submissão e docilidade que elas fortemente carregam dentro de si. Busco com elas a construção do “ser mulher” do jeito que fizer sentido a elas e que assinale a sua potência (seja buscando emagrecer ou não). Que elas possam assumir o que quiserem em suas vidas, pois quem sabe dos seus corpos e dos seus desejos são elas próprias.
Há um movimento muito importante atualmente chamado “Body Positivity” que defende a valorização de uma beleza que acolha a diversidade e a singularidade e desconstrua esse ideal estético implacável a que somos permanentemente submetidas. E aqui não se faz uma defesa da obesidade, mas da crença de que é possível cuidar da própria saúde sem precisar se sufocar para isso. É possível se amar mesmo se você não encaixa no padrão. Pois desconfio que quem se encaixa no padrão são só os manequins das lojas mesmo.
Por uma vida com mais leveza (interna) sempre!
Referências
NOVAES, J. V. e VILHENA. J. Meu corpo, minha prisão: Em busca do corpo ideal. Acesso em 11/09/2017
Andrea M. M. Cembranelli é psicóloga (CRPSP 06/89562) formada pela USP. Atende desde 2010 em consultório particular adolescentes e adultos com excesso de peso visando o resgate da sua potência e autoestima, a elaboração de seus conflitos psíquicos e a construção de mais flexibilidade interna e de maior empoderamento em relação às suas escolhas.
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