No último sábado a Seleção Brasileira de Futebol disputou com um Chile bravo e corajoso a primeira partida das oitavas de final da Copa do Mundo de 2014. Foi um jogo duro, daqueles em que se disputa cada lance com o máximo de estresse. O Brasil até que começou bem mas, depois de um toque errado de Hulk seguido de uma falha generalizada do sistema defensivo, permitiu que o Chile empatasse o jogo. O que vimos no segundo tempo foi um Brasil acuado, assutado com a possibilidade de ser desclassificado da Copa em seu próprio país, a segunda edição no país do futebol.
É verdade que a primeira gravou na memória do Brasil a mais significativa e surpreendente derrota de toda a sua história. Desde 1950 se fala do silêncio no Maracanã após o segundo gol uruguaio, aquele que arrancou o que seria o primeiro título mundial brasileiro.
Nem o campeonato conquistado 8 anos depois na Suécia e tampouco os quatro que viriam mais tarde (o Brasil é o único pentacampeão do mundo) conseguiram apagar as marcas deixadas pela derrota de 1950. E foi justamente em 1958, às vésperas do início da Copa do Mundo, que Nelson Rodrigues cunhou o termo “complexo de vira-latas” para fazer referência ao complexo de inferioridade próprio do brasileiro. Assim ele escreveu (“As cem melhores crônicas brasileiras” – Editora Objetiva, Rio de Janeiro: página 118):
“ (…) é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício (…). Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.”
Como ele bem disse, o complexo de vira-latas não se restringe ao futebol. Para não ir tão longe, havia um clima de fiasco em torno da organização da Copa aqui no Brasil. Qualquer problema cotidiano fazia emergir a frase “Imagina na Copa”. E a realidade, mais uma vez, mostra outro cenário. Os jogos estão acontecendo sem grandes problemas. O complexo de vira-latas é tão forte que o futebol parece ser o único meio de nos fazermos reconhecidos. E é apenas futebol.
Voltemos ao jogo contra o Chile. Imagino como deva ser difícil para os jogadores da Seleção administrarem as expectativas que recaem às toneladas sobre suas costas. Futebol é coisa séria no Brasil, tanto que falamos em primeira pessoa sobre o “esquadrão de ouro”: “Vencemos no finalzinho!”, “Quase nos surpreenderam…” e por aí vai.
A verdade tem de ser dita. Os brasileiros consideram a Seleção um time imbatível, de modo que, na média do senso comum, ela jamais perdeu um jogo simplesmente porque o adversário foi melhor. A Seleção perde porque faltou vontade, porque trocar um meia por um volante não foi nada inteligente, porque entrou de salto alto ou por qualquer outro motivo que se encontre na hora da derrota. Pois bem. É nesse contexto que vejo nossos jogadores representando o país durante a Copa no Brasil. Além de não poderem perder por serem imbatíveis, super-humanos, ainda têm de nos reparar a derrota de 1950. Perder novamente em casa não dá. As toneladas de expectativas que esses jogadores carregam apareceram, penso, no segundo tempo do jogo contra o Chile. Porque foi justamente ali que alguma possibilidade de desclassificação começou a se desenhar. De medo, a Seleção recuou. O pavor de levar um gol pareceu maior do que o desejo de marcar. E assim o jogo se arrastou até o fim da prorrogação. Quem sobreviveu ao chute chileno no travessão a dois minutos do fim, teria de reunir forças para suportar assistir ao Brasil disputando a vaga nas cobranças de pênaltis. E tão logo o árbitro apitou o final da prorrogação, vimos alguns jogadores brasileiros chorando. Como disse, são toneladas de expectativas sobre eles, os invencíveis craques da imbatível Seleção Brasileira.
Por fim o Brasil venceu (3 X 2 nos pênaltis). Vi muita gente chorando e muita gente tensa durante o jogo e depois dele. Há um vídeo rodando a internet que mostra um torcedor que, de tanta tensão acumulada, dá um tapa destruidor na TV após a primeira defesa de pênalti feita pelo goleiro Julio Cesar. Também fiquei tenso, confesso. Na verdade, entregar-se às emoções de uma partida de futebol é um exercício interessante de controle das emoções e de inserção na partilha de valores e de identidade com o coletivo. Mas o que vi depois do jogo foi aquele tradicional pessimismo do brasileiro, o mesmo relatado por Nelson Rodrigues em 1958. Notemos a ambivalência. É justamente por não aceitarmos outra coisa senão a vitória que ficamos pessimistas. Já vamos logo nos antecipando nas mais estapafúrdias explicações para justificar uma eventual derrota que possa acontecer no jogo seguinte. Ou Neymar jogou sem vontade, ou Felipão insistiu num esquema furado ou tinha de ter convocado Kaká e Robinho.
Há quem diga que os jogadores ganham muito dinheiro e, por isso, não podem errar um passe ou um chute: “Eu ganho muito menos e, se eu errar algo no meu trabalho, perco o emprego.” Esse é mais um elemento que mostra a crença do brasileiro de que a Seleção Brasileira é imbatível. Pouca gente se dá conta de que o futebol é um esporte, ou seja, há competição. O desempenho é levado ao limite durante um jogo. Busca-se vencer a partida de modo que o adversário saia derrotado. Em qualquer modalidade é assim. O desempenho é de alto rendimento. Um ganha e o outro perde. Isso quer dizer que um atleta ou uma equipe vai alternar vitórias e derrotas. E sempre haverá vitoriosos e derrotados simultaneamente. Claro que vai se destacar quem possuir mais vitórias que derrotas. Mas necessariamente alguém sai perdedor. Vale sempre lembrar… o Brasil é o único pentacampeão do mundo. Mas, ainda assim, não admitimos o erro de jogadores do Brasil. São imbatíveis, infalíveis. Se isso não se concretizar no campo, é porque não honraram a camisa.
Apenas como um adendo, minha visão é a de que os jogadores do Brasil fizeram uma partida de superação contra o Chile. O jogo não foi bonito, verdade. Mas foi um jogo disputado com muita vontade pelas duas equipes. Do ponto de vista do controle das emoções, não conheço o trabalho feito pela comissão técnica e, por isso, não posso opinar com propriedade. Mas digo que minha percepção é a de que os jogadores souberam sim administrar as emoções nesse cenário de expctativas tão rigorosas.
A nós, torcedores, cabe o mesmo desafio. Temos de administrar nossas emoções de modo que elas se restrinjam ao torcer no escopo esportivo. Se a Seleção Brasileira não for campeã da Copa, não vão sequestrar seus parentes, não vão demitir você do emprego e nem a Argentina anexará o Rio Grande do Sul. Só teremos de esperar outros 4 anos até a próxima disputa.
É só futebol. Torcer com emoção, sentir um embrulho no estômago ou arrancar os cabelos é parte da brincadeira. Mas, ainda assim, é só futebol. Se a derrota não nos torna um país pior aos olhos do resto do mundo, tampouco uma vitória faz do Brasil um país melhor. Futebol é celebração. Um país melhor depende de educação e trabalho, depende de como agimos cotidianamente.
Amanhã o Brasil inaugura as quartas de final contra a Colômbia. Teremos mais uma chance de celebrar o futebol. O Brasil já está entre as oito melhores equipes do torneio. Se vencer amanhã, estará entre as quatro. Só não esqueçamos de que se trata apenas de futebol.
Desejo a você boas emoções!