Se fosse uma cidade, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, localizado no bairro de Cerqueira César, teria uma população maior que a de 508 dos 645 municípios de São Paulo. Por dia, passam pelos seus oito institutos um contingente de 50 000 pessoas, incluindo pacientes, familiares, funcionários e colaboradores terceirizados.
Com um orçamento anual de 3 bilhões de reais, o HC possui mais recursos que cidades do porte de Mogi das Cruzes (2,7 bilhões de reais em 2024), na Região Metropolitana, com 451 000 habitantes.
A tantos números superlativos soma-se mais um importante: nesta sexta-feira (19), o maior complexo hospitalar da América Latina completa 80 anos. Inaugurado com apenas um prédio de 178 000 metros quadrados, o HC triplicou de tamanho em oito décadas e prevê crescer ainda mais nos próximos anos, tanto nas estruturas físicas quanto em atendimento, pesquisas e inovação tecnológica.
Na última segunda-feira (15), um grupo de médicos e pesquisadores do hospital retornou do Mato Grosso, mais precisamente do Parque Indígena do Xingu, onde passou duas semanas realizando exames de imagens nos habitantes locais.
Chamado de OpenCare 5G, o programa, desenvolvido em parceria com a iniciativa privada, consiste na utilização de equipamentos de ultrassom conectados à quinta geração móvel (via satélite, em redes criadas especificamente para a missão), cujos resultados são confeccionados e analisados por especialistas alocados em São Paulo.
“A comunidade não é atendida por ultrassom e o projeto tem como um dos objetivos evitar longos deslocamentos”, afirma Giovanni Cerri, diretor do InovaHC, o braço de inovação e saúde digital do HC. Após os testes no Xingu, o OpenCare 5G será levado ao Vale do Ribeira, a região mais pobre de São Paulo, em uma parceria com o governo paulista. “No futuro, expandiremos o programa para teleconsulta e demais procedimentos.”
Além dos pilotos com o 5G em áreas remotas país afora, o setor de inovação do hospital, que visa a levar os programas à rede do SUS e também comercializá-los com o setor privado, possui uma série de ideias em andamento, como um aplicativo de georreferenciamento para pacientes se localizarem nos 600 000 metros quadrados de edificações e alamedas do complexo.
Outro exemplo de projetos em testes é o que prevê a criação de um banco de dados com a unificação de todos os exames feitos pelo paciente em diferentes locais. “Quando um exame é realizado no setor público ou no privado, as informações não se comunicam e não há acesso a elas de forma global. A nossa ideia é criar uma proposta como a que existe no sistema bancário”, diz Cerri, do InovaHC.
Enquanto algumas iniciativas estão no campo de testes, outras já foram transformadas em programas e passaram a ser incorporadas ao dia a dia do Hospital das Clínicas. É o caso de um algoritmo desenvolvido por uma das startups instaladas no InovaHC (são cerca de trinta empresas alocadas no espaço) para o diagnóstico de câncer de fígado.
Resultado de dois anos de estudos, o programa aponta lesões suspeitas em fígados com cirrose e dá ao radiologista os locais mais propensos a apresentar tumores.
O próximo passo do InovaHC é aumentar o escopo de pesquisas e desenvolver um laboratório de inteligência artificial generativa destinado ao aprimoramento da detecção de outras doenças além do câncer de fígado. O espaço contará com pesquisadores, empreendedores e estudantes e terá como primeira missão transformar a maneira como os laudos de radiologia são criados.
Chamado de gerador adaptativo de laudos, e batizado com o acrônimo GAL, o sistema vai permitir a estruturação automática dos resultados, levando em conta o histórico do paciente e tornando o diagnóstico mais ágil e preciso.
Desde que foi criado, em 2019, o InovaHC recebeu cerca de 200 startups e algo em torno de 50 milhões de reais em investimentos. A meta para os próximos dois anos é dobrar o valor.
Em paralelo ao crescimento no campo digital, o Hospital das Clínicas prepara a construção de dois novos prédios que prometem desafogar duas importantes áreas, atualmente sobrecarregadas.
O primeiro edifício, orçado em 100 milhões de reais e com catorze andares, vai se chamar Dr. Ovídio Pires de Campos e será destinado às especialidades de oftalmologia, otorrinolaringologia, bucomaxilo e cabeça e pescoço, atualmente alocadas no Instituto Central, o primeiro e maior do complexo.
O espaço vai comportar catorze salas cirúrgicas, dezessete leitos de recuperação e outros dez de UTI. “Quando essas especialidades saírem do Instituto Central, poderemos destinar os leitos para atender às dificuldades atuais, que são as demandas de cirurgias. Outra ideia é otimizar os espaços e transformá-los em gestões compartilhadas com as especialidades”, prevê o diretor clínico do HC, Edivaldo Massazo Utiyama.
O segundo a ser construído, com nove andares e orçado em 50 milhões de reais, será voltado às pesquisas, atualmente realizadas de forma descentralizada em cada um dos institutos. A ideia, com o novo complexo, é realizar estudos de medicamentos, por exemplo, em que a população é convidada para compor as análises, na chamada fase três.
“Hoje, do ponto de vista de área, os locais de estudos são pequenos e não conseguem atender à demanda ideal. As estruturas não são centralizadas, o que atrapalha até as negociações comerciais. Com o novo prédio, nos tornaremos referência”, afirma o diretor Utiyama. A previsão é que a construção dos dois institutos seja objeto de licitação até junho e leve dois anos para ficar pronta.
A três quilômetros do complexo principal do Hospital das Clínicas, um novo e moderno espaço, erguido após anos de espera, tem a missão de transformar momentos de dor em um período de acolhimento.
Entre as funções do Instituto Perdizes, localizado na Rua Cotoxó, estão o tratamento de dependência de drogas e álcool, a transição de cuidados (quando o paciente recebe alta hospitalar, mas ainda depende de cuidados específicos) e os cuidados paliativos. Estes últimos, com foco voltado para doenças graves, não apenas as incuráveis, têm o objetivo de proporcionar melhor convívio do paciente com as enfermidades e mais dignidade durante o tratamento.
“É preciso desmistificar os cuidados paliativos como algo destinado apenas a quem vai morrer. Eles servem para quem convive com doença grave. Há casos de tratamentos de câncer que duram quinze, vinte anos”, afirma Douglas Crispim, diretor do corpo clínico do Instituto Perdizes.
No local, os pacientes têm direito a dietas especiais e à realização de alguns desejos, como a visita de animais de estimação em determinados períodos e até saídas programadas, a depender do estado físico deles.
No ano passado, o instituto recebeu duas apresentações da banda Os Pitais, que tem o guitarrista Andreas Kisser, do Sepultura, como um dos integrantes. Em macas ou em cadeiras de rodas, os pacientes do espaço subiram à cobertura do prédio e viram a apresentação do grupo, formado também por outros artistas renomados, como Kiko Zambianchi, todos voluntários.
A principal atividade do Instituto Perdizes é o tratamento contra vício em álcool e drogas. Prestando atendimento ambulatorial a 1 200 pacientes por mês, que chegam indicados por outras unidades de saúde (o hospital não possui pronto-socorro de “porta aberta” ao público em geral), o local oferece terapias específicas para vários tipos de drogas. “Têm chegado muitos casos de crianças e adolescentes com dependência nas chamadas drogas K, as sintéticas”, alerta Crispim.
Outro público que procura ajuda no instituto são executivos de grandes empresas viciados em opioides. “A Faria Lima está em peso aqui.”
Ao passo em que planeja crescer para vários lados, o Hospital das Clínicas, inaugurado em 1944 com o custo de construção de 40 milhões de cruzeiros (o equivalente a 154 milhões de reais atuais), orgulha-se de seu pioneirismo em diversos setores ao longo da sua história.
Em 2020, no início da pandemia do coronavírus, o Instituto Central voltou suas forças para atender apenas casos graves de covid-19. De uma hora para a outra, os 900 leitos de todas as especialidades integraram o chamado “covidário”, um esforço monumental que mobilizou muita gente. Além de receber os médicos especialistas em tratar a doença, centenas de profissionais de outras áreas foram deslocados para o espaço.
Na ocasião, além de atuar em sua sede, o hospital também passou a prestar assistência remota para a intubação de pacientes internados em UTIs em diversos locais do país. A estratégia acabou se tornando um programa efetivo e objeto de convênio com o Ministério da Saúde.
Nas décadas anteriores, o HC fez o primeiro transplante de coração do Brasil (1968), o primeiro transplante intervivos de fígado do mundo (1988) e o primeiro transplante de útero da América Latina (2016). “Olhando para os próximos oitenta anos, com as pessoas vivendo mais, a missão do HC será investir cada vez mais em tecnologia”, afirma o superintendente do Hospital das Clínicas, Antonio José Pereira, o Tom Zé.