Não tem muito do que falar aqui. O negócio é deixar o cara se expressar. Aos 76 anos, Zé Celso Martinez Corrêa comanda o movimento do seu Teatro Oficina. Não apenas o espaço físico, projetado pela arquiteta Lina Bo Bardi e cravado na Rua Jaceguai, no Bixiga, onde suas peças se arrastam por horas a fio e ainda encantam muita gente. O Teatro Oficina de Zé Celso funciona como uma mentalidade que envolve diretamente nesse momento mais de sessenta pessoas e é símbolo de resistência de uma arte que ele acredita e com essa convicção seduz. Os 55 anos do Oficina estão sendo festejados em livro. Organizado pelo ator e designer Mariano Mattos Martins, Oficina50+, Labirinto da Criação é uma obra visual, praticamente uma instalação em forma de livro, calcada em programas, fotografias, cartazes e matérias de jornais e revista. No palco, ou melhor, na pista do Teatro Oficina, a arte não pode parar. Zé Celso e sua turma revisitam e recriam a vida e o legado de Cacilda Becker em dois espetáculos. Cacilda!!! Glória no TBC e 68 AquiAgora ganha exibição nos sábados, às 18h. Aos domingos, no mesmo horário, é a vez de Cacilda!!!! A Fábrica de Cinema & Teatro. As duas montagens – independentes, mas complementares – têm direção musical de Felipe Botelho. Camila Mota e Sylvia Prado, Nash Laila e Marcelo Drummond se revelam na pele da grande estrela brasileira. Mas, enfim, tudo isso são detalhes. O que importa é deixar Zé Celso se expressar. E agora, Zé?
São 55 anos de Teatro Oficina. Qual foi o momento mais difícil nessa trajetória?
O momento mais difícil é agora! Quando o Teatro Oficina e seu entorno foram tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional) em 2010, o Silvio Santos me disse em sua casa o seguinte… Já que ele não poderia fazer mais nada com seu terreno no quarteirão que cerca o Oficina, por causa do tombamento federal, ele também não queria mais nos empatar e nem ser empatado. Propôs então a troca por outro terreno do mesmo valor em São Paulo. Enviou a seguir uma carta oficial através de um executivo do Grupo Silvio Santos, o Guilherme Stolliar, propondo esta troca. Encaminhamos a carta ao Ministério da Cultura. A ministra Marta Suplicy assumiu a busca de um terreno da União do mesmo valor – encontrou. Silvio nos concedeu desde então um contrato de comodato de ocupação do terreno. Fizemos numa tenda para 2000 pessoas, As Dionizíacas de 2010. Lá, encenamos os espetáculos Taniko – um Nô Japonês, Bacantes, O Banquete e Cacilda!! Estrela Brazyleira a Vagar. Montamos lá também a encenação do Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, num circo. Enfim, temos ocupado até hoje esse terreno vizinho ao Oficina com parte da encenação de Acordes, de Brecht e Paul Hindemith, e das Cacildas. Além disso, temos cultivado o espaço inspirados na PermaAgricultura dos Índios do Brasil. Mas, este ano, o responsável no Grupo Silvio Santos para tratar de seus assuntos imobiliários apresentou, sem assinaturas dos representantes legais do Grupo SS, um distrato do comodato que Silvio Santos nos concedeu enquanto se opera a troca do seu terreno com a União. Eu me recusei a assinar um documento sem a assinatura de Silvio Santos. O responsável, então, ameaça nos processar. Logo, o momento mais difícil é agora.
Essa questão se arrasta há quase quinze anos e parece não ter fim, não?
A política invasiva da especulação imobiliária exerce sua ditadura sobre o Governo do Estado de São Paulo, através de um órgão, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo. Eles deram uma de Pastor Feliciano, sabe? Inverteu sua razão de ser e aprovou o Projeto de Construção de Torres no Entorno do Oficina. Essa obra simplesmente fecha a entrada do sol e a fachada oeste dessa obra-prima da arquitetura e do urbanismo. Trata-se de um janelão que Lina Bo Bardi abriu para a cidade, assim como Vão Livre do Masp. A construção das torres também ameaça a Árvore Cezalpina plantada por ela, como em sua casa no Morumbi. Ela nasce no Jardim do Oficina e abre sua copa no terreno vizinho. É a árvore sagrada do Terreiro Eletrônico do Teatro Oficina. Lina, desde 1980, projetou um Teatro de Estádio. Edson Elito e nós, do Oficina Uzyna Uzona, fomos criando a Universidade Antropófaga e, com muitos arquitetos urbanistas do Brasil e com os que aqui vieram para a Bienal de Arquitetura do ano passado, o aperfeiçoamos com o que chamamos Oficina de Florestas: a extensão de uma belíssima Alameda Pomar deixada pelo Grupo Silvio Santos para o reflorestamento de todo bairro do Bixiga. Há 33 anos, nós lutamos por essas terras que sagramos com nosso cultivo teatral e agora, também, criando a área verde. Há mais de 55 anos estamos na Rua Jaceguai, 520, e criamos não somente uma revolução no teatro brasileiro e mundial, como cuidamos da obra-prima de valor financeiro incomensurável dessa artista, que hoje o mundo todo saúda por sua arquitetura inspirada na “arqueologia urbana”. Na devastação geral que nossa cidade enfrenta, neste último terreno vazio da periferia central do bairro do Bixiga, não podemos deixar acontecer isso.
Você realiza a proeza de ainda hoje ser mentor de um grupo que representa de fato uma comunidade teatral, no sentido mais puro da palavra, com ideias próprias e uma postura de aparentemente autonomia. É isso que te mantem ativo e incansável?
Com nossos 55 anos de atividade, sempre vibrando para o mundo todo com nossa arte, criamos, com o que Cacilda Becker chamava de “classe teatral”, um valor novo para o teatro. Dos anos 40 aos 60, isso foi sendo plantado aqui em SamPã e, sobretudo, no Bixiga. Mesmo durante a ditadura militar, por sua luta heróica, o teatro teve importância enorme em sua posterior queda. Com a mudança da ditadura militar para a ditadura financeira, o teatro foi relegado ao ostracismo, vingando somente um teatro cover do hemisfério norte, hoje em total decadência, mas que aqui é o instrumento mercadológico dos artistas commodities de televisão. Mas o Oficina Uzyna Uzona, com toda OficinaFobia, reconstruiu de seu DNA dos anos 60 uma companhia produtiva e valorizadora dessa arte arcaica e sempre contemporânea, como espetáculos como Ham-let, Bacantes, Os Sertões, Macumba Antropófaga e, agora, a série Cacildas!!!!!!!!! comprovam.
Se você pudesse eleger um momento de sua vida profissional, eu pergunto… Qual é a maior transgressão que Zé Celso já fez no teatro?
Fazer esta arte do Etherno Aqui Agora sempre inspirado na revolução antropófaga de Oswald de Andrade a partir da encenação de O Rei da Vela, que fizemos em 1967. Foi o Teatro Oficina também quem trouxe de volta, depois de milênios, a presença do coro no espetáculo Roda Viva. de 1968. O retorno à antropofagia de Oswald de Andrade plugou nossa geração na Tropicália. Desde então, uma cultura branca, sobretudo no teatro, foi devorada pelos rituais indígenas, africanos, candomblaicos, pela Rádio Nacional, pela cultura pop mundial e virou do avesso a cultura teatral do hemisfério norte. Isso tudo trouxe a descolonização e a universalização das culturas do sul da Terra, antropofagiando-se. O superego colonial foi pra picas, mas hoje, com a ditadura do mercado, reimpôs-se para o rebanho a cultura decadentérrima do rebanho cafona do hemisfério norte. Nós, mais que nunca, estamos engolindo com a revolução da net e com nossos corpos de índios arcaicos mundiais tecnizados essa sociedade do espetáculo das caras e bocas a alto custo.
Como você enxerga esse momento do Brasil em que a violência contra as manifestações populares e a homofobia voltaram a fazer parte da nossa rotina?
Retornarmos francamente ao teatro e à antropofagia com muito mais sabedoria, como a das sessenta pessoas que criam e produzem no Oficina UzynaUzona – e das inúmeras, valiosíssimas companhias de teatro que criam em equipe. Retornarmos à reinvenção dos coletivos repovoando a cidade de novas maneiras de ser, à roça da infraestrutura da vida, a cultura, sem se deixar levar pelas máscaras insuportáveis dos que vivem no rebanho escravizado do fim do Terror e Misérias do Fim do Capitalismo, que quer agora levar a Terra junto com seu suicídio. Todo mundo sente. Sente muito. Todos, de todas as classes e etnias, sentem a Terra sendo estraçalhada. A vida está caríssima e absurda por causa do luxo brega dos bilionários. A cidade infarta pela poluição e o seu trânsito, que este ano começa já pondo no mercado uma quantidade de carros maior que todos os tempos. É o Gran Finale! E na arte mais desprezada, o teatro se reconhece novamente o que é ser um corpo/quântico/alma/vivo/livre: um território onde cada um pode decretar sua emancipação da escravidão dos Carandirus de luxo, esses condomínios fechados, do lixo cultural ordinário mercantil, da comida com gosto de inseticida, de não aceitar o outro como ele é.
Qual foi a maior alegria que o teatro te deu?
Às vezes, a condenação, a falta de estímulo financeiro que se dá ao teatro enche o nosso saco. Ou melhor, esvazia nosso saco e nos condena a trabalhar nos nossos limites, que sempre superamos na precariedade radical. A maior alegria que sinto agora é estar sempre em cena, como nunca deixei de estar. Mas custa muito caro fazer o que se gosta. O prazer, o gosto, ainda não foram descobertos como as maiores fontes de riqueza. Nosso valor é ignorado pelos boçais que não nos sacam, apoiados pelos políticos sem talento. Eles, através das burocracias e lobbys, estão querendo transformar tudo na abstração chamada cálculo financeiro, criando um simulacro de vida através do que significa não perceber a natureza, que estão querendo substituir por abstrações e fantasmas. Os índios são hoje a nossa vanguarda. Eles sabem viver de acordo com o que Darwin descobriu muito depois deles – e que Flávio de Carvalho confirmou: somos originários dos deuses aquáticos, animais, vegetais, minerais. Mas a maioria não vive o aqui e agora, neste estar entre o pré humano e o trans humano, com todo o inverso do universo em permanente mutação pulsante nesta Terra. Este é o ser vivo, de onde viemos e pra onde vamos retornar, sem ficar esperando Messias.
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