Em duas décadas de carreira, Leona Cavalli coleciona personagens que trilham o limítrofe caminho dos mitos, sendo elas reais ou não. A atriz já representou nos palcos a Ofélia de “Hamlet”, a Geni de “Toda Nudez Será Castigada”, a Blanche Dubois de “Um Bonde Chamado Desejo”, e a Medeia da tragédia de Eurípedes. Também deu vida para a atriz Cacilda Becker em “Cacilda!”, montagem de Zé Celso Martinez Corrêa, e, desde outro, interpreta a artista plástica mexicana Frida Kahlo no espetáculo “Frida y Diego”, cartaz do Teatro Raul Cortez. Escrita por Maria Adelaide Amaral e dirigida por Eduardo Figueiredo, a peça revela a intimidade de Frida e Diego Rivera (papel de José Rubens Chachá), dois dos maiores nomes das artes do século XX, que muitas vezes pecaram pelo excesso de humanidade.
O espetáculo mostra uma Frida Kahlo fragilizada, insegura e infeliz como mulher. Qual é a dificuldade de uma atriz na hora de apresentar uma personagem assim, sendo ela um tipo real e idealizado pelo público?
Sim, existe um risco. É uma personagem conhecida por grande parte do público. A expectativa é maior. Mas exatamente este desafio tem sido um grande privilégio, interpretar Frida Kahlo como uma mulher, com anseios, questões e emoções, completamente humanos. Acho que esta é também uma das qualidades da montagem e do texto, que revela a paixão, os encontros e desencontros comuns de dois grandes artistas que se tornaram mitos, Frida e Diego. Se a abordagem da personagem ficasse só na visão mitificada não seria tão interessante para uma atriz. E, conhecendo mais a vida de Frida, através da obra, das biografias, fotos e vídeos, vi que essa é uma das características mais presentes e fascinantes dela. Ela era tão forte e tão frágil ao mesmo tempo. Inclusive, muitas das falas da peça são dela mesma. Creio que, por isso, também seu mito está além de sua obra, está nas atitudes e visão humanista que Frida tinha e expressava.
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Quando nasceu a intimidade entre você e Frida?
Adorava Frida por sua obra, tão impactante e única, diferente de tudo. Mas conhecia muito pouco de sua vida. Até que, uns anos atrás, a cineasta Tata Amaral me trouxe de um Festival de Cinema do México o filme “Frida, Natureza Viva”, de Paul Leduc. Frida dizia que não pintava “natureza morta”, mas sim “natureza viva” e fiquei muito impactada com sua história, chorei muito. Mas nunca pensei em interpretá-la. Até que, logo após a Copa do Mundo, quando tinha acabado de finalizar a temporada carioca da comédia “E Aí, Comeu?”, do Marcelo Rubens Paiva, o produtor e diretor Eduardo Figueiredo me convidou para fazer esse texto da Maria Adelaide Amaral. Já tinha participado de uma minissérie da Maria Adelaide, “Dalva e Herivelto”, e contracenado com o Chachá na novela “Gabriela”, mas ainda não no teatro. Também nunca havia trabalhado com o Eduardo. Aceitei e passei a ler as biografias, o diário e todo extenso material que existe sobre Frida.
E como você se impregnou de Frida?
Sinceramente acho que é uma das artistas mais marcantes da nossa cultura, muito à frente de seu tempo, que influencia o mundo todo até agora. E não só nas artes plásticas, mas na fotografia, na moda, nos adereços, no comportamento e nas atitudes libertárias. Há pouco, já em cartaz, fui ao México e visitei a casa de Diego Rivera e a Casa Azul, hoje Museu Frida Kahlo. É impressionante como sua presença é viva e forte. Frida conseguiu o que sempre desejou, virou sua própria obra de arte, ainda hoje é uma “natureza viva”.
Se a gente for pegar Geni, Blanche, Cacilda e Frida, por exemplo, podemos pensar em algo em comum entre elas: são mulheres apaixonadas e que sofreram muito por amor. Você estabelece ligações desse tipo na hora de compor uma nova personagem? Busca na bagagem das mais antigas algo que possa acrescentar para a personagem atual?
Interpretar uma personagem é muito delicado e complexo. É vivenciar no seu próprio corpo um outro ser humano. Naturalmente não deixo de ser eu mesma, com as ferramentas de meu corpo físico, emocional, mental, mas sinto sempre necessidade de “zerar”, para recomeçar, sentir aquela nova pessoa que se apresenta. Curiosamente, eu já fiz muitas personagens “clássicas”, como as que você citou. Ainda citaria Medeia, Ofélia, Semelle e Inês Pereira, entre outras, que, por isso mesmo, já foram muito bem interpretadas anteriormente. Então, sempre me coloquei a necessidade de fazer “do meu jeito”, com autenticidade, sem comparações, nem comigo mesma em personagens anteriores. Acho que isso é necessário pra manter o frescor, não só de quem vê, mas como o meu próprio prazer de atuar. E, no caso da Frida, assim como no da Cacilda Becker, que são mulheres que existiram e são muito amadas pelo público, essa necessidade se intensifica. Não a de fazer como elas eram, até porque isso é impossível, mas da minha maneira, nas circunstâncias do texto presente.
De uns anos para cá, sua carreira conheceu um novo rumo. O teatro ficou mais quietinho e você emendou uma novela na outra. Foi uma estratégia mesmo? Você planejou, inclusive para diversificar suas atividades, ficar conhecida do grande público, talvez famosa, ou foi um caminho natural, quase por acaso?
Acho que tenho tido sorte de fazer personagens maravilhosas, de trabalhar com grandes autores, diretores e colegas, e agradeço muito; mas é algo que vem acontecendo naturalmente. Comecei minha carreira fazendo autores clássicos, como Gil Vicente, Shakespeare, Eurípedes, Tennessee Williams, Oswald de Andrade e Nelson Rodrigues no teatro. E isso foi essencial para a minha formação. Fiz Faculdade de Artes Cênicas na UFRGS, em Porto Alegre, mas nada foi mais importante que o contato com a plateia através dessas montagens. Aos poucos, comecei a fazer cinema e, depois, também televisão. Tem resultado em uma ampliação do público, mas é algo circunstancial. O melhor é interpretar em todos os veículos, cada um tem seus prazeres, desafios e aprendizados. Acredito que atualmente este seja um caminho natural. Até porque, independente da forma, a essência da interpretação é sempre a mesma.
O que a experiência no teatro ajudou na televisão? E sua relação com a televisão mudou de alguma forma o jeito de encarar o teatro?
O teatro sempre ajuda e ensina, porque é onde se tem mais tempo de criação de personagens, composição e contracenação. E o fato de não ter edição, da relação ser ao vivo, faz com que se tenha facilidade com improviso, que é importante. A relação com a televisão e o cinema é algo que vem a somar com o teatro, no fundo acabamos percebendo que o que importa mesmo é a entrega ao personagem e ao jogo da história que está sendo contada.
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O trabalho contínuo na televisão deve ter te oferecido uma estabilidade financeira que o teatro não proporcionava. Sua vida mudou e até lhe permite agora oferecer uma dedicação mais plena ao teatro, já que você deve ter um salário?
Sou contratada da Rede Globo e isso, sem dúvida, gera certa estabilidade. Mas, de fato, o que realmente pode proporcionar uma estabilidade maior é o trabalho contínuo, o não desistir, fazer de qualquer forma, da maneira possível. Como em qualquer outra profissão, a única garantia do ator é o desejo, a dedicação, a busca do aperfeiçoamento e a disciplina. A minha vida sempre esteve ligada à minha paixão pela interpretação. Com certeza, eu continuarei com plena devoção por esse ofício.
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